O pesquisador, por Luciano Moreira (Xykolu)

Consta que, após demonstrar habilidades e desenvolver competências em atividades várias – como ajudante de pedreiro, o popular servente, ou como auxiliar de mecânico, ou ainda como tipógrafo, o gráfico de então –, ele, autodidata por excelência, chegou a ser professor de Língua Portuguesa – especialista no ensino da Gramática – em escola profissionalizante de 2º grau, atual Ensino Médio, cujo desempenho o fez merecer o respeito de docentes e discentes, embora ainda na efervescência da juventude, a vasta cabeleira escorrendo até os ombros e o rosto quase imberbe.

Consta também que, em meados de 1974, participou de concorrido certame patrocinado pelo IBGE, sendo um dos escolhidos para, na função de pesquisador, atuar na fase de campo do Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF), uma variação avançada – de maior abrangência, profundidade e rigor – do então PNAD (Programa Nacional por Amostra de Domicílios), por meio do qual o governo brasileiro, com assessoria da Food and Agriculture Organization (FAO), pretendia “avaliar o consumo alimentar, a estrutura de despesa familiar e o estado nutricional de uma amostra da população brasileira”. Para ele – e tantos outros jovens –, o ganho, em salário e diárias, fora o maior atrativo.

O contrato, com duração de um ano apenas, assinado após treinamento, acendeu nele a chama da aventura. Assim, assumindo os riscos que sempre envolvem a temporariedade, ele se dispôs a dar os primeiros passos no serviço público. E, como teria de dedicar-se em tempo integral à aplicação dos instrumentos da pesquisa, mudou-se, de mala e cuia, de corpo e alma, para uma mediana cidade do interior nordestino, incluída no rol das selecionadas para a composição da amostra.

As horas vagas dos primeiros dias, ele as preencheu com caminhadas pelos logradouros da cidade, com o objetivo de estabelecer com ela uma relação de proximidade. Pretendia conhecê-la por inteiro.

Nas suas andanças, percebeu que, exceto as inscrições nas fachadas dos prédios públicos, todas as faixas e placas (ainda não havia os outdoors – eu acho que é assim que se escreve –, nem se usavam as paredes para publicidade) expostas em vias públicas continham expressões não gramaticalmente aceitas.

Por onde passava, nada via que satisfizesse as suas exigências de ex-professor da língua pátria (ou seria mátria?!). Eram comuns os “Vende-se móveis usados”, “Faz-se unhas”, “Amola-se foices, facas e facões”, “Aluga-se quartos”. Mas havia casos bem específicos, como a “Alfisina Mecânica O Tonho da Mercês” e o “Disintupimu ezgotu e disgotamu foças”.

Já desiludido, descobriu, numa ruela periférica e de pouco movimento, uma alfaiataria (nos velhos tempos dos alfaiates!). Uma vistosa placa encimava a larga porta de entrada. E lá estava escrito o que o jovem ex-professor, agora pesquisador, considerou como a salvação da sua pesquisa bem pessoal: AGUIA DE OURO.

Sem esconder seu contentamento, ele parabeniza o dono do estabelecimento e acrescenta:

– Apesar da falta de acento agudo no primeiro A de águia, posso afirmar que a sua placa é a única, na cidade inteira, que mais se aproxima da forma correta de escrever em português. Parabéns!

Ao abraço de felicitações, segue-se o convite do alfaiate:

– Jovem, será sempre bom receber você aqui. Sinta-se à vontade. O AGUIA DE OURO é a sua casa!

Ao pronunciar o “u” e com maior tonicidade, o bom homem revelou tratar-se de AGULHA DE OURO! Alfaiataria Aguia de Ouro! Para a frustração do jovem lente, cuja pesquisa alcançava, assim, o teto estatístico, ou seja, 100%.

Post Scriptum: Como adepto da Sociolinguística, parte da ciência Linguística que estuda e defende a língua em uso, em toda e qualquer forma de falar (variação linguística), trato a GRAMÁTICA, uma das partes mais significativas de qualquer idioma, com afeto e com cuidado. Ela deve sempre nortear minhas manifestações – faladas ou escritas – em português-brasileiro. Mas não devo considerá-la o chicote do purista contra a liberdade de expressão de um povo. Isso nunca!

Ao educador, compete respeitar as peculiaridades do educando, aceitá-las, e, com carinho e dedicação, conquistá-lo para a caminhada em busca do aperfeiçoamento pessoal que poderá levá-lo a um outro patamar social – sociolinguístico, eu diria.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

1 comentário

  1. Francisco Luciano Gonçalves Moreira

    A QUEM INTERESSAR POSSA
    A transformação do /lh/ em /i/, como em agulha > aguia, no caso, inclui-se entre os chamados fenômenos linguísticos. Duas razões, no mínimo, explicam-no:
    1) A difícil pronúncia do /lh/, por exigir elasticidade do dorso da língua, cuja ponta se eleva até tocar levemente o palato (céu da boca), obstruindo parcialmente a passagem do som, que escoa pelas laterais (lateralidade palatal ou palatalização);
    2) A aproximação entre os pontos de articulação da lateral palatal /ypsilon invertido/ ou /lh/ e da semivogal /y/ ou /i/, caso em que o dorso da língua se eleva em direção ao palato (céu da boca), comprimindo a passagem do som, sem obstruí-la.
    Para alguns linguistas, trata-se do fenômeno da despalatalização (ou perda da palatalização) seguida de iotacismo (evolução de um som para a semivogal). Para outros, como Marcos Bagno, autor de vários livros sobre o assunto, entre eles A LÍNGUA DE EULÁLIA: Uma novela sociolinguística, tem-se, no caso, a assimilação, que se verifica quando dois sons diferentes, mas com algum parentesco, tornam-se semelhantes, iguais.
    Convém lembrar que na língua francesa esse fenômeno ocorre naturalmente, como, por exemplo, “bataille” > “bataye” ou “travailler” > travayê”. Há registro dele também na língua espanhola: “batalla” > “bataya”.