O motor do drama é a incapacidade do herói atingir os seus objetivos. A ideia lançada pelo realizador português João Pedro Rodrigues é uma excelente epígrafe circunscrita subliminarmente em seu quinto longa-metragem. No excelente “O Ornitólogo” (2017), João lança mão de uma série de códigos e referências na realização de um diálogo poderosíssimo entre arte, religião e cultura popular.
Na estória, acompanhamos Fernando, um ornitólogo de 40 anos que decide viajar pelo curso de um rio realizando pesquisas sobre os hábitos das aves que habitam a região de Trás-os-Montes, em Portugal. Entretanto, quando uma correnteza forte derruba sua pequena embarcação, ele inicia uma jornada sem volta e arriscada pela mata portuguesa.
Apesar da pista naturalista, o longa na verdade é construído sob uma base que tem o misticismo como espécie de fio condutor de boa parte da narrativa. Isso porque todo o primeiro ato e parte do segundo discorre sobre o modo como essa jornada é construída pelo nosso protagonista. E aí, técnica e autoria são traços percebidos muito fortemente.
E tecnicamente falando, tudo é inicialmente concretude nessa estória onde temos um personagem com um problema primário: Estar perdido numa vasta mata, que apesar dele bem conhecê-la, está cercada de perigos que vão dos animais que nela habitam até os próprios homens que nela também estão à solta).
Secundariamente, vamos notando que o filme se desenvolve de modo a estarmos caminhando junto a Fernando. O que pressupõe que, se de início nosso olhar concentra-se numa ideia de resolutividade dos problemas que se apresentam ao personagem, adiante percebemos que suas intenções saem deste campo passando para motivações existenciais sobre o seu próprio ser.
Ser esse que se revela, na verdade, o próprio “eu” de João Pedro como pessoa e realizador. Vida e trabalho, conceito e estética coabitam num campo trans-morfo dessa experiência de um cinema autoral. Que se autoafirma em ideia e matéria. Ideologicamente falando, João rompe o limite da apresentação e desenvolvimento das suas personagens para o campo da sua própria imersão na estória. Ele é o seu cinema e isso por si pressupõe ao menos duas coisas: coragem e ousadia.
E se no seu excelente “O Fantasma” (2000) seu foco se volta para o desenvolvimento da psique da personagem rumo a sua animalização frente ao mundo, em O Ornitólogo, esse movimento segue curso, mas com a adição de mais um viés. A autoria vem assinada não apenas pelo dado do crédito pela obra, mas pela vontade do realizador em ser ele mesmo a obra que ali apresenta.
O hermetismo, a incompreensão e recusa são os pontos que podem ligar a obra cinematográfica, sobretudo a contemporânea, com o olhar que o espectador venha a ter diante dela mesma. O cinema como ponto de vista sobre o mundo passa a ser uma premissa. Um código de partilha, referências e modos de olhar para nossa realidade. Um convite para esquecermos a experiência do cinema ou a colocarmos num local da nossa memória seja como dúvida ou resposta.
Nesse ponto é que O Ornitólogo se revela como obra que irá sim resistir ao tempo. E mais que isso, estará sempre aberta à interpretação dos que a virem. E ai, saltará sua construção em percepção a partir do repertório daquele que a vir. Porque no longa nem tudo está claro, mas a luz sobre a obra poderá ser dada exatamente em função da percepção que tivermos dela. Não estamos diante de uma obra imposta. Ela somente é. Para mim e você.
FICHA TÉCNICA
Título Original: O Ornitólogo
Tempo de Duração: 118 minutos
Ano de Lançamento (Portugal/França): 2016
Gênero: Drama
Direção: João Pedro Rodrigues