O MAR ESTÁ LIVRE! por Rafael Silva

Todas as tradições preocupadas com a relação do homem com o sagrado têm como meta o duplo caminho entre a denúncia e o anúncio. Se fosse possível sintetizar esse movimento numa única palavra seria esperança. Para ilustrar, chamo a excelente metáfora de Antoine de Saint-Exupèry (1), quem melhor expressou a esperança: “se quiseres construir um barco, a primeira coisa que deves fazer antes de colher a madeira e distribuir trabalho, é evocar nos homens o anseio de mar livre”.

Pensando na minha última contribuição denominada “QUEM É O DEUS BRASILEIRO?”, publicado como instrumento de denúncia contra toda forma de opressão, em especial aquela que denominamos de pobreza, me impus a outra tarefa: anunciar a esperança.

A esperança é uma utopia concreta. O gesto de delicadeza com o futuro e a forma última de viver o presente. É a justa arma revolucionária do pobre e de todos que com ele se emanam rumo à superação de injustiça. Teilhard de Chardin (2) outro dia afirmou que “o mundo pertence àquele que lhe oferece a esperança”. Por isso, precisamos reinventar o presente com a nossa capacidade renovada na esperança. Esse movimento exige muito mais do que esperar, consiste na ação livre e perigosamente apaixonada em anunciar e realizar outra sociedade, aqui e agora!

Não é preciso afirmar quão fundamental consiste em compreender a história, mas o grande impulso é escolher qual o lado da história você vai assumir; sem querer reduzir o pensamento, parece muito oportuno atestar a existência de duas gramáticas historicamente estabelecidas, sobretudo, na América-latina: a do opressor e do oprimido. Paulo Freire lembrou que a nossa tarefa consiste na boniteza e na capacidade de esperançar. Esse movimento não é uma simples transformação de substantivo abstrato por um verbo, mas quer nos dizer da tarefa de fazer “acontecer à esperança”.

Os oprimidos precisam reconhecer-se num só povo. Estabelecer-se a partir do critério da compaixão que une aqueles e aquelas destituídos de suas vestes, de seus alimentos e de suas liberdades. Foi essa experiência deixada pelo nazareno da Galileia e que até hoje projeta medo. Ao aceitar a liga da compaixão, o povo estará pronto para fazer a travessia do deserto, emanado de um sentimento de solidariedade. Isso será capaz de apresentar-lhe um credo em saída e marchar rumo à liberdade. Em outras palavras, é preciso ousar construir no conjunto, no plural, na tessitura de uma nova sociedade que supera e une o oprimido e estabelece outra lógica inserida na dinâmica do trabalho, do acesso à terra e do direito a paz.

Bem dizia Luiz Carlos Restrepo (3) quando alertou com razão que todos nós herdamos um pouco de Alexandre – O Grande – porque alimentamos certo arquétipo de guerreiro, o conquistador. Aquele pronto para destilar a ideologia da dominação e do colonizador. A expressão patológica da essência humana torna o homem insensível diante da insustentabilidade de quase 2/3 da humanidade, exposta a uma vida sub-humana nas periferias do mundo. A ordem opressora nega acesso a alimentos a quase 1 bilhão de pessoas, forja competição desonesta impulsionada pela meritocracia, alimenta-se da ignorância de uma economia doentia e orientada para o consumo.

Precisa-se de uma utopia concreta, realizável. Capaz de posicionar a todos diante de tudo aquilo que separa e gera morte. Escolher o lado do oprimido é apostar noutra lógica, inserida na solidariedade, amistosa e amorosa. Capaz de nos remeter ao mesmo núcleo familiar quebrando barreiras e fronteiras, caracterizada na construção de outra civilização, bem dita por Maier como a civilização da pobreza. Não porque as pessoas ali sejam destituídas de bens, mas porque optaram na liberdade do amor por “viver bem, do que ter muito”.

Talvez, para alguns liberais isso seja muito abstrato e impraticável, mas eu afirmo que impraticável é aceitar o mundo tal qual como se apresenta hoje, baseado na chaga do capitalismo predatório e parasitário. Adormecido na perspectiva do mercado que envenena a natureza e a vida. Impraticável é assistir cidades europeias expulsar os imigrantes, mesmo sabendo que a razão inicial desse fenômeno é consequência direta do patriarcado e da colonização registradas na história recente. Impraticável é ver um presidenciável ser aplaudido por empresários quando de forma desequilibrada promete metralhar uma favela no Rio de Janeiro, como forma de acabar com a violência. Isso é insustentável em qualquer civilização minimamente séria.

Para reafirmar minha hipótese, novamente recorro ao pensamento de Antoine Exupéry “é com o coração que se vê corretamente; a essência é invisível aos olhos”. Por isso, a construção da concreta utopia ocorre no momento seguinte em que o homem resolve se impor a toda dinâmica opressora, dentro ou fora do Estado. Com ou sem bandeiras de fé. Independente da matriz política ideológica. Quando ele resolver sentir mais e ver menos resgatará a chama sagrada da esperança reacendendo o brilho da vida. Nesse momento, o melhor do humano lhe porá em condição oposta a qualquer tipo de opressão que insta cotidianamente os mais fracos. Afinal, como bem sentencia Ellacuría “não surgirá o homem novo, enquanto não se conseguir uma nova relação com a riqueza gerada”.

É preciso globalizar a esperança ao invés do egoísmo, a vida ao invés do consumo. É preciso uma nova ordem global pautada na ternura e no amor. Nós precisamos fazer da história o arco capaz de jogar mais longe possível a flecha da esperança.

Vamos todos juntos. Homens e mulheres, pois o mar está livre.

  1. Pensador francês, autor do clássico Pequeno Príncipe.

2. Pierre Teilhard de Chardin foi um padre jesuíta, tentou construir uma visão integradora entre ciência e teologia.

3. Pensador Colombiano.

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

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Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.