O escravagismo persiste no Brasil pela via do racismo e do preconceito

(Trecho do artigo de Rosana Pinheiro-Machado, publicado originalmente em www.cartacapital.com.br)

A persistência do modelo escravagista brasileiro da Casa Grande e da Senzala no Brasil democrático do século XXI se dá em diversos níveis: na relação tão próxima quanto doentia entre patroas e suas empregadas domésticas, na segregação espacial e, principalmente, na lógica punitiva que insiste em manter o horror da política do “pano, pão e pau”.

O racismo institucional brasileiro – aquele que ninguém se acha racista, mas todo mundo conhece um racista – é uma continuidade histórica desse modelo de Gilberto Freyre acerca da ideologia da mistura (a qual se funda na troca de fluidos entre a dócil negra que amamenta a sinhazinha ou o sêmen do coronel que a estupra). Todavia, esse sistema, que foi tão intimamente germinado, apresenta mais separação do que fusão, mais apartheid e castas do que a fábula das três raças. O que prevalece é segregação territorial e suas regras claras de circulação. A transgressão desse lugar simbólico ou espacial – onde cada um deveria saber bem o seu lugar – sempre fora severamente punida.

A verdade é que o Brasil ainda é uma das sociedades mais racistas, segregadas e violentas do mundo. Diversas formas de linchamento físico e moral compõem o corolário de práticas cotidianas. E a maioria das feridas sobre o corpo e a consciência negra é silenciosa e invisível. Elas ocorrem longe das redes sociais, nas periferias, onde a violência histórica e estrutural do Estado brasileiro se faz presente diariamente ao negar os direitos fundamentais e ao inserir uma polícia violenta e brutal.

Do lado das punições formais, Rafael Braga, negro e em situação de rua, é o único condenado pelas manifestações de rua de 2013 por carregar Pinho Sol. Aliás, pergunto-me o que teria acontecido se fosse uma mulher negra carregando Pinho Sol. Tenho certeza que o objeto seria considerado ideal e inocente, digno de seu papel social: o da limpeza. Já o homem seguirá o caminho das prisões brasileiras, onde encontrará outros milhares de corpos negros abarrotados, aguardando a tortura do Estado brasileiro, onde novamente serão tratados com ódio, a pano, pão e pau – como nos velhos tempos.

O racismo velado se desvela. Mas eu prefiro acreditar que esta onda de ódio – que se manifesta em atos que amarram um adolescente negro a um poste em nome da justiça ou nas torturas das palavras virtuais e dos gritos em estádios – não significa que as coisas estejam iguais ou piores. Prefiro acreditar que se trata da reação em face do movimento sutil das placas tectônicas da sociedade de classes brasileira, que ponta para uma leve ruptura entre os limites do apartheid que existia (e que ainda tenta desesperadamente existir) entre a Casa Grande e a Senzala.

 

Franzé de Sousa

Repórter Fotográfico/Videomaker, colaborador do Segunda Opinião.

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Repórter Fotográfico/Videomaker, colaborador do Segunda Opinião.