O desafio da Previdência Social, por Cecil Juruá

Parte I- a questão do déficit previdenciário.
Sobre a ocorrência ou não de um déficit nas contas da Previdência Social, várias respostas vem sendo divulgadas pela imprensa.  Em dois extremos situam-se o Governo e os acadêmicos (de esquerda) das áreas de Economia e de Finanças/Contabilidade.  Para o primeiro existe um rombo nas contas, grande e crescente.  Para os opositores não há déficit, é esta a conclusão apresentada pela ANFIP/Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil perante a Comissão da Seguridade e Familia da Câmara dos Deputados em 15 de julho de 2015.  Afirmaram na ocasião os representantes da ANFIP:
-Só no ano passado a Seguridade Social registrou superávit de 53,9 bilhões. (…)  No ano passado [2014], as contribuições criadas e destinadas exclusivamente para a Seguridade Social somaram R$ 686 bilhões. (…)  Todos esses gastos com Previdência Social, Saúde e Assistência Social somaram R$ 632 bilhões.  “Portanto, ainda restaram R$ 53,9 bilhões, os quais, em quase sua totalidade, foram desvinculados pela DRU (Desvinculação das Receitas da União)” [foi o relato] …
Na minha interpretação, a diferença dos resultados entre cálculos do Governo e da oposição reside na interpretação dos textos legais.  A oposição insiste na tese de que há contribuições criadas e destinadas exclusivamente para a Seguridade Social, com base no artigo 195 da Constituição Federal.  No entanto:
a)O texto original da Constituição de 1988 indicou apenas três fontes de financiamento para a Seguridade Social:  1-contribuição dos empregadores, incidentes sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro,  2-contribuição dos trabalhadores,  3-alíquota sobre o resultado da comercialização da produção no caso de produtor, parceiro, meeiro e arrendatários rurais, garimpeiro e pescador artesanal.
b)As fontes definidas no texto original da Constituição de 1988 foram especificadas e/ou alteradas através de Emendas Constitucionais e leis complementares.  Destacam-se as Emendas de números 20 e 42, de 1998 e 2003, respectivamente, e as Leis Complementares de números 70/1991 e 101/2000.  Em 2005, a EC no.45 viabilizou a utilização de alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas para definição das contribuições a cargo de empregadores e de trabalhadores.  Não se tratou publicamente, até então, dos efeitos da Lei Complementar 101, de 2000, a LRF.
c)Até a edição da LRF, uma única emenda modificara a CR em questões de Seguridade Social.  Foi a EC número 20 de 15 de dezembro de 1998, que introduziu no art. 195 os incisos II, III e IV, sobre novas fontes de contribuições para a Seguridade Social.  No inciso IV, que criou contribuição social devida pelo importador de bens ou serviços do exterior, figurou o seguinte parágrafo:
Par.10-A lei definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municipios, observada a respectiva contrapartida de recursos .
Pouco depois de promulgada a EC no. 20, maio de 2000, houve a edição da Lei Complementar no. 101, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, que determinou a criação de um Fundo de Regime Geral de Previdência Social vinculado ao MPA, com a finalidade de prover recursos para os beneficios do regime geral da previdência pública (artigo 68). Acontece que “existem leis que não são executadas na prática.  E esse é o caso do artigo 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal que estabeleceu um Fundo do Regime Geral de Previdência Social a partir do ano 2000.Esse Fundo nunca existiu.”  É o que declarou recentemente Mauricio Oliveira, assessor econômico da COBAP.
Vinculada a esta lacuna jurídica, talvez se possa observar a alta rotatividade dos titulares do MPA após a edição da LRF.  Entre 2001 e 2015 houve dez ministros da Previdência e Assistência Social, e apenas um, Garibaldi Alves Filho, atingiu e ultrapassou dois exercícios fiscais.  Inacreditável!  G. Alves Filho teve o nome indicado pelo PMDB, levado à presidente Dilma como postulante ao cargo de Ministro do MPA, foi empossado em janeiro de 2011 e renunciou ao cargo em janeiro de 2015, quando então retornou ao cargo de Senador da República e votou pelo impedimento da presidente à que servira (ou desservira?) por quatro anos.
Mesmo não existindo o Fundo Federal, foram criados fundos estaduais do regime geral de previdência social.  Convém analisar seu funcionamento, em cada unidade da federação onde foi criado.  Não foi possível fazer tal análise no âmbito deste texto. Pode-se contudo supor que a União entendeu que tal fundo existe e que ele contabiliza apenas as contribuições de empregadores e de trabalhadores como recursos destinados exclusivamente ao financiamento do regime geral de previdência social a cargo do MPA, mesmo antes da transferência deste ministério para a Fazenda.
Se esta hipótese for confirmada, haveria efetivamente um déficit no regime geral da previdência social, frente aos resultados obtidos em 2014:  receita de contribuições de empregadores e trabalhadores no valor de R$ 350 bilhões, insuficientes para a cobertura das despesas com benefícios previdenciários que atingiram R$ 394 bilhões naquele mesmo ano de 2014. (Ver os dados da ANFIP, inquestionáveis, no nosso entendimento) O déficit teria sido de R$ 44 bilhões, equivalente a 15% da arrecadação feita junto aos beneficiários.
Este déficit poderia ter sido maior, no provável entendimento do Governo, se as receitas previdenciárias tivessem contribuído com 20% da arrecadação, R$ 70 bilhões, para a DRU/Desvinculação das Receitas da União.   Teríamos então um déficit no regime geral de R$ 114 bilhões. Este nos parece ser o ponto de vista do governo em matéria de regime geral da previdência social, a ocorrência de um déficit superior a 30% da arrecadação do mesmo benefício, como efeito de incidência da DRU, questão que o Governo teria dificuldades de explicitar e prefere omitir.
Não nos propusemos, no âmbito deste texto, delinear de que lado está a verdade jurídica do “imbróglio” apresentado sobre o Fundo do Regime Geral da PS. Talvez o senador Garibaldi Alves Filho possa fazê-lo de forma competente.  Aqui nos limitamos a procurar entender os termos da discórdia, sem o que qualquer acordo será impossível.
Sobre o papel da DRU na montagem de um déficit previdenciário, evitamos tratá-lo aqui a fim de minimizar a complexidade do problema já colocado.  Isto será feito em uma parte II deste artigo sobre O desafio da Previdência Social. Mas fica colocado desde já nosso ponto de vista quanto à ilegitimidade de transferência para o pagamento da dívida pública (DRU), de recursos dos contribuintes do regime geral da previdência social, recursos obtidos mediante tributo obrigatório e vinculado a aposentadorias e pensões, vinculação explícita em todos os textos constitucionais e leis complementares editadas de 1988 até esta data.
_______   RJ, outubro de 2016.
*Ceci Juruá é economista e doutora em políticas públicas, tendo sido professora universitária na área de Finanças Públicas, conselheira do CORECON-RJ por dois triênios e vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas.  Atualmente é membro do Conselho Consultivo da CNTU.
1.  http://www.anfip.org.br/informacoes/noticias/Publicacao-da-ANFIP-comprova-superavit-da-Seguridade-Social_15-07-2015.   Nas despesas estão incluídos:  benefícios previdenciários, benefícios assistenciais administrados pelo INSS, bolsa família, gastos com Saúde Pública, ações do FAT [fundo de auxilio aos trabalhadores] e ações diversas.
2.  Ver Constituição da República atualizada até a Emenda Constitucional no. 48 de 10 de agosto de 2005. Ed. Saraiva, 37ª. Edição, atualizada e ampliada, 2005.
3.  Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos, publicação de 2-12-2015.  In: http://www.cobap.org.br/noticia/58023/fundo-do-regime-geral-de-previdencia-nunca-saiu-do-papel-da-lei.
(Texto originalmente publicado em www.jornalggn.com.br)

Convidado

Artigos enviados por autores convidados ao Segunda Opinião.

Mais do autor

Convidado

Artigos enviados por autores convidados ao Segunda Opinião.