O Brasil está duro demais para quem é humano, por Fernando Horta

Um dos conceitos-chave para entender a obra de Marx é o conceito de “alienação”. É um conceito do Marx jovem, porque da forma como é colocada no Capital ele é um conceito incompleto. Na sua maturidade, Marx trocou o uso do termo “alienação” pelo composto processual mais explicativo que é “opressão” ou “exploração”. É um suposto afirmado não pontualmente, mas em toda a obra de Marx que à toda alienação sobrevém a opressão e exploração que é o motivo de alienar.

Sacar alguém das suas amarras materiais, ideológicas, culturais – enfim – amarras que permitem que os homens se situem no tempo o no espaço é jogá-lo no vazio. Isto é alienação. Mas deixar o homem no vazio não é o objetivo, até porque ele ali não sobrevive sequer como ente produtivo. O objetivo final de todo o processo de alienação é o uso físico inescrupuloso para gerar valor, o uso ideológico do ser por um impostor intelectual que o coordena e o uso político do cidadão por uma classe a qual ele não pertence.

Marx nos seus “Manuscritos econômicos e filosóficos” de 1844, mostra cinco etapas da alienação que ocorrem dentro do sistema capitalista. Primeiro, o homem seria alienado da natureza em função do trabalho. Vive o dia e não o sol, a noite e não a Lula, nas palavras belas de Toquinho e Belchior. Quantos de nós hoje, saímos pela manhã para trabalhar, nos enfiamos num ônibus ou trem, depois numa fábrica ou escritório e na volta outro trem até que não se percebe que não se viu o Sol o dia inteiro?

A segunda e terceira formas de alienação seriam a alienação de si e de seus próprios desejos. Não sabemos mais o que realmente queremos, tudo é ditado pelo consumo e pela propaganda. Se conseguimos saber o que queremos, não nos parece viável, afinal “temos que trabalhar”. As pessoas falam da sexta-feira como um momento de alforria. É quase uma libertação de escravos toda a semana. Mas a empolgação da sexta esconde o ocaso de nós mesmos nos outros dias. “Seja feliz no trabalho”, “ache o que gosta de trabalhar”, “seja produtivo” e tudo mais dito hoje com nome de “coaching”, que no fundo é uma super-alienação em looping. No fim, esquecemos de nós, da família, do que nos dá prazer e nos deixa feliz. Em troca, produzimos para alguém, sobrevivemos e tomamos boletas para que quimicamente possamos entorpecer nossa alma.

Todas estas três primeiras formas estão presentes e arraigadas no nosso dia-a-dia. Provocando imensas dificuldades em termos de saúde. Mudando nossa anatomia, fazendo com que vivamos menos, mas criando mercado para a indústria farmacêutica, para a televisão, redes sociais …

Contudo, o mais apavorante são as duas últimas formas de alienação.

Marx disse que a quarta forma de alienação era a alienação quanto à sua espécie. O homem deixaria de se reconhecer como homem. A classe opressora se veria como algo mais do que homem. Talvez melhores, talvez mais “meritórios”. Talvez o dinheiro seja um signo do sucesso per se. Quem tem mais é porque fez e tem condições de fazer melhor. Como se fosse decorrência lógica inafastável do sistema capitalista premiar os “melhores de nós”. A classe oprimida se veria como inumanos, não dignos de postularem-se semelhantes. O fato de não ter dinheiro, indicaria, na cabeça destes alienados (tanto dos oprimidos quanto dos opressores), que eles são incompetentes, que não valem para a sociedade.

Temos seitas de pastores inteiros convencendo as pessoas desta nefasta e absurda ideia “em nome de Cristo”.

Quando vi a queda do prédio em SP, e a forma como uma elite mesquinha e ignorante tratava as pessoas-vítimas, vi o conceito de alienação de Marx. Nem vou falar de Dória ou Covas que são arremedos mal-feitos de humanidade incapazes de qualquer raciocínio mais elaborado e qualquer crítica da sua situação no mundo. Se fossem críticos e inteligentes, e – de repente – acordassem para a sua situação, certamente poriam fim nas próprias vidas, ao contemplarem diretamente sua pequenez e suas vilanias.

A agressão e ofensa aos pobres é o reconhecimento, por conta da completa ignorância, de que existem duas espécies de seres: uma que trabalha e tem dinheiro e a outra vagabunda que precisa ser “dedetizada por fogo”, como li – com ânsia – nos portais da grande mídia. Um bombeiro, cujo nome gostaria de saber, calou a boca de uma repórter inepta. Ao ser perguntado sobre caráter ilegal da ocupação respondeu, ao vivo, “não estou aqui para discutir legalidade, mas para salvar vidas”.

O golpe alienou a sociedade brasileira. Hoje, uma parcela acredita-se superior aos humanos. E este quantum de superioridade alcança inclusive suas Santidades Togadas, que já se enxergam como profetas a guiarem seu rebanho pelo deserto da corrupção, rumo à Terra Prometida.

Marx ainda falava numa quinta forma de alienação. Seríamos afastados da noção de humanidade como um coletivo social. Não apenas no sentido biológico como o caso da quarta forma, mas do sentido de humanidade como construto histórico-cultural. Nosso passado não seria mais importante, nosso futuro tampouco. Nosso presente seria marcado pela noção imediatista da sobrevivência mesmo que por sobre os outros seres. A palavra “irmão” não teria mais sentido num mundo em que o individualismo é a chave da sobrevivência. Achille Mbembe, filósofo negro camaronês, fala do “fim da era da humanidade”. Para Mbembe, estamos entrando num momento em que toda significação pelo que tantos morreram nos séculos anteriores será desconstruída. O mundo será refundado sem os valores que nos trouxeram até aqui, como espécie e como sociedade.

Marx e Mbembe explicam o absurdo de São Paulo.

E eu fico com os pobres que, mesmo alienados, não têm culpa de sua alienação. Choro de raiva e de dor ao ver que nem mais respeitam o legado de Cristo, o homem. Se a era do humanismo vai acabar, vai me consumir junto. E eu temo muito pelos meus filhos.

Ser humano hoje no Brasil é sentir dor todos os dias. Imposta por pessoas que estamos quase desistindo de tentar salvar. E enquanto choramos a decadência moral deles, vamo-nos nos convencendo de que eles não têm mais salvação. Ao deixarmos de acreditar, vamos morrendo também.

FERNANDO HORTA É HISTORIADOR – TEXTO POSTADO EM SEU BLOG E NO JORNAL GGN

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