O advento da pós-verdade, por Rui Martinho

Andam falando em pós-verdade como um fenômeno recente e de natureza popular, de gente simples, situada abaixo dos “esclarecidos”. Mas o relativismo cognitivo, como o axiológico, não é recente nem de origem popular, é coisa de intelectual. Seus primeiros mestres foram os sofistas, integrantes da fina flor da intelectualidade grega. Contemporaneamente os pós-estruturalistas e filósofos da linguagem em geral são os arautos do relativismo cognitivo e axiológico. Subitamente a negação da verdade trocou de nome: passou a ser pós-verdade. Foi renegada pelos seus relativistas mais ardorosos. Deixou de ser “do bem” e virou “do mal” e de expressão da sabedoria passou a ignorância manifesta.

A mudança abrupta coincide com o Brexit, a eleição, o surgimento de uma tendência contraia à globalização, à União Europeia, impulsionada pelo nacionalismo e pelo protecionismo e a eleição do Trump.

O protecionismo descende do mercantilismo, praticado do século XV ao XVIII, tendo ganho respaldo doutrinário no século XVII. O mercantilismo industrial francês, ou colbertismo, do ministro Jean-Baptiste Colbert, de Luís XIV, era protecionista e estimulava as exportações em busca de saldos comerciais positivos, com base na intervenção do Estado absolutista na economia. A vertente espanhola visava a acumulação de metais preciosos. Os britânicos buscavam no livre comércio o caminho para o crescimento econômico.

A globalização tem parentesco com o livre comércio do mercantilismo inglês. O protecionismo oposto ao globalismo tem alguma semelhança com o colbertismo, invocando o Estado intervencionista. Os “esclarecidos” eram críticos acerbos da globalização, eram nacionalistas, protecionistas e adeptos do Estado dirigente. Quem se opunha a estas teses tinha que ser “do mal” ou um idiota manipulado pela “grande mídia”. Semearam vento e estão colhendo tempestade.

Eis que de repente os “esclarecidos” condenam o nacionalismo, defendem a União Europeia e a globalização, repudiam o protecionismo alfandegário; se colocam do mesmo lado da “grande mídia” e do “famigerado grande capital”; e até abandonam o relativismo cognitivo execrando a “pós-verdade”. Herdeiros dos sofistas, só reconhecem conveniência e retórica convincente, aludida como “narrativa”, os que paradoxalmente se apresentavam ao mesmo tempo como “esclarecidos” e como relativistas extremados, agora defendem dogmaticamente a globalização, combatem o nacionalismo e repudiam o protecionismo invocado pelos críticos do globalismo. Tudo sem nenhum rubor na face. É a prevalência de alguns interesses sobre a razão, em ambos os lados, em ambos os momentos.

Caiu, todavia, o argumento de que os “alienados” fossem levados pela “grande mídia”. Esta colocou-se do outro lado dos resultados das votações surpreendentes na Inglaterra e EUA.

Duro é reconhecer que a globalização beneficiou mais as massas dos países periféricos do que as dos países centrais. Os “esclarecidos” não confessam, nem diante da forca, que o próprio discurso nunca foi verdadeiro, mas instrumento de conquista do poder.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

Mais do autor

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.