“Será que um sonho, depois de sonhado, acomodará mudanças na vida do sonhador?”
[Sigmund Freud, por Irvin D. Yalom, em Quando Nietzsche chorou, pág. 61]
Mistério. O livro da biblioteca do sonho ainda repousa na minha mão esquerda, agora.
Como ele veio até mim, no curso do sono reconfortante em que se deu a vivência quimérica de minha alma adejante, nada, por mais insignificante que seja algum frágil elo que me interliga às múltiplas circunstâncias de minha realidade adormecida, as quais concorrem fundamentalmente para que eu seja demasiadamente humano, nada mesmo que me possa isso esclarecer povoa, nesse momento de muita tranquilidade e de paz interior, a capacidade investigativa de um pobre e contumaz sonhador semidesperto. Tudo me aparenta ser surreal, apenas. Também, pouco me importa que o seja. Eu quero mais é deleitar-me com o prolongamento, até não sei quando, deste prazeroso momento.
Convém notar que, em QUANDO NIETZSCHE CHOROU, publicado originalmente em 1992, o renomado psicoterapeuta e professor de psiquiatria Irvin D. Yalom, estreante na sublime e quase divinal – porque sobre-humana – arte de produzir romances, traça um paralelo fantástico entre ficção e realidade, ao engendrar um relacionamento improvável – embora algumas ocorrências à época pudessem até dar-lhe sustentação plausível – entre um dos precursores da psicanálise, o doutor austríaco (clínico geral) Josef Breuer, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “um mestre de verdades amargas, um profeta impopular”, segundo ele mesmo, e o jovem médico Sigmund Freud, em relação a quem Josef se considerava “não apenas seu amigo, mas seu professor, seu pai, seu irmão mais velho”.
Os caminhos então percorridos por esses célebres personagens se entrecruzam na urdidura de uma trama bem arquitetada e bem conduzida pelo autor e, na tessitura sempre rica e frágil que recobre e encapsula as relações interpessoais, expõem muito do que constrói e embala e alimenta e aguça e atormenta a alma humana. De permeio, três figuras femininas: Bertha, a paciente por quem o clínico austríaco nutre uma paixão que o angustia e põe em risco a segurança do casamento com Mathilde, uma bela e impressionante mulher, exemplar companheira e nascida – e muito bem! – de respeitável família vienense; e Lou Salomé, a jovem russa que desperta no filósofo alemão o amor desesperado logo transmutado em ódio. E é nesse cenário de conflito que as funções de médico e paciente – Breuer e Nietzsche – se confundem, se alternam, se entrechocam, se complementam. Até que, aceito um acordo verbal que não deixa clara a principal finalidade, sob pena de pôr em risco todo o processo, eles admitem se enfrentar num jogo de alto nível emocional e acabam interagindo simbioticamente.
O certo é que a “terapia através da conversa”, mediante “a limpeza da chaminé”, novo método de tratamento experimentado por Breuer, acaba servindo de instrumento eficaz no combate aos tormentos que aterrorizam Nietzsche e aos traumas antes aprisionados no espírito do humanitário clínico geral e ora desvendados.
Trata-se de uma história comovente, capaz de prender a atenção do leitor desde que “O carrilhão de San Salvatore invadiu o devaneio de Josef Breuer” até a viagem de Friedrich Nietzsche para “um encontro, um honesto encontro com um profeta persa chamado Zaratustra”.
Relembro, então, algumas outras obras de Yalom, por mim lidas com igual propósito e mesmo deleite, com destaque para MENTIRAS NO DIVÃ, enquanto folheio calmamente este seu romance inaugural (lido em 2006 e relido recentemente). Aos poucos, vou percebendo que as sublinhas por mim impostas a algumas de suas frases que me causaram reações bem especiais, levando-me a meditar sobre o real significado nelas enclausurado, revelam-se como sendo as mesmas inscritas nos espelhos dos degraus da ebúrnea escadaria – cuja numeração sequenciada remete às páginas do livro que ora folheio e onde elas habitam e eu as revisito (Ediouro Publicações, 20ª edição, Rio de Janeiro – RJ, 2005; tradução de Ivo Korytowski) –, as quais, quando deles se desprendem, esvoaçam “íntegras pelo ambiente de raras claridade e calmaria, sempre subindo como se atraídas pela concavidade da gigantesca abóbada ogival, até desaparecerem completamente”.
Algumas delas, transcrevo-as aqui literalmente, seguidas de breves comentários meus.
- “Não existe remédio para o desespero, médico para a alma.”
Breuer resiste à proposta, que Lou Salomé lhe faz com insistência, para que admita Nietzsche como paciente e cure o desespero de seu amigo “que corre grande perigo de se suicidar”.
- “A morte é tão perigosa.”
É o que diz Freud em conversa com o amigo e mestre Breuer, após ouvir dele que jamais se habituaria com a morte de seus pacientes e reconhecer a essencialidade da esperança para quem luta pela vida em situações extremas.
98: “Atinge-se a verdade através da descrença e do ceticismo e não do desejo infantil de que algo seja de certa forma!” (…) “É um desejo de não morrer, um desejo do eterno mamilo intumescido que rotulamos de Deus.”
Agora é Nietzsche quem nega a validade da assertiva de um paciente terminal do médico vienense – enfatizada por Breuer em um dos sempre difíceis contatos por eles mantidos no consultório clínico: “Ponho-me nas mãos de Deus”. O “eterno mamilo intumescido” encerra uma crítica à prática da humanidade de sempre buscar em Deus a solução para seus problemas, como um bebê faminto sugando, no seio materno, o leite que saciará sua fome.
- “Torna-te quem tu és.”
O filósofo alemão diz que muitos afirmam ser sua obra filosófica assentada em areia, dadas as mudanças constantes de suas opiniões; mas ele tem suas sentenças de granito. E essa é uma delas, em cujo cerne coloca a verdade como parâmetro para a descoberta de quem e o que somos sem ela.
- “Amo aquilo que nos torna mais do que somos!”
Após ouvir Breuer sugerir que a confiança em Deus seja uma escolha, Nietzsche se opõe a isso, sustentando tratar-se de uma ilusão externa ao homem e que sempre o enfraquece. O “aquilo” que ele diz amar seria a verdade?!
- “Morrer é duro. A recompensa final dos mortos é não morrer nunca mais.”
Após afirmar que “Cada pessoa é dona de sua própria morte”, decerto desautorizando a eutanásia, o filósofo alemão deixa transparecer não ser o suicídio uma escolha sua.
- “Tudo que não me mata, me fortalece.”
Eis mais uma sentença de granito da filosofia nietzschiana. Com ela, reforça o seu entendimento de que a doença que o aflige é, na essência, uma bênção.
- “A mente adora passagens secretas e alçapões.”
O filósofo, então, deixa o clínico assombrado ante a semelhança de suas afirmações e o pensamento de Freud sobre a existência de “reinos mentais independentes e murados dentro da nossa mente”.
- “Todos ficam fartos da mesma refeição.”
Eis a voz de Max, concunhado de Breuer, referindo-se, num de seus “arroubos de vulgaridade”, às relações conjugais.
- “Não se é responsável até pelo próprio esquecimento?”
O clínico vienense questiona o fato de seu paciente, o filósofo alemão, ter-se esquecido de guardar o vidro de cloral na mala, o que lhe permitiu a ingestão de pílula seguidas vezes, como se pretendesse adotar uma conduta autodestrutiva.
- “Não tenho crenças sobrenaturais e estou me afogando no niilismo.”
É nesse exato momento que médico e paciente mudam suas posições originais. Breuer, dizendo haver matado Deus e reconhecendo não mais saber por que e como viver, pede a Nietzsche que o admita como cobaia na sua experiência de tentar salvar a humanidade do niilismo (pessimismo e ceticismo extremos) e da ilusão.
218: “Lembre-se: a histeria é uma doença feminina.”
Essa frase remete o leitor a uma informação anterior, quando Breuer, aludindo a pacientes com sintomas físicos (paralisia, mudez, cegueira, surdez), cuja causa se resumia a um conflito psicológico, diz que chamavam esse estado de histeria, palavra que se origina do grego “hysterus” que significa “útero”.
- “O desejo sexual é, no fundo, um desejo de dominar totalmente a mente e o corpo de outrem.”
Nietzsche sustenta que as relações sexuais, à semelhança de todas as demais, envolvem luta pelo poder. Adiante, reforça essa ideia com “O ‘amante’ não é alguém que ama, pelo contrário, ele almeja a posse exclusiva da amada”, expulsando todos os seus semelhantes para bem longe desse bem precioso.
- “A sensualidade é uma cadela que morde nosso calcanhar!”
O filósofo alemão prossegue questionando o erotismo banal, o sexo escravizante, o que alimenta “a vala do desejo”.
- “Quem não obedece a si mesmo é regido por outros.”
Encerra o pensamento nietzschiano acerca da dependência do homem, quando o indivíduo prefere ser obediente a regras que outros lhe impõem a assumir a condução de seu próprio destino.
- “Se você matar Deus, terá de deixar o abrigo do templo.”
O desespero de Breuer levou-o a declarar que poderia negar a fé e abraçar o ateísmo. Nietzsche o adverte sobre ter de, por conta disso, renunciar “os pequenos confortos do crente!”.
- “É claro que você sente medo, viver significa correr perigo.”
Ante a angústia do clínico austríaco, o filósofo alemão não lhe oferece conforto, tratando como trivial o mal que o acomete.
- “Praticamente ninguém escapa das dores do amor.”
Breuer investe na tentativa de ouvir de Nietzsche a confissão – que considera fundamental para o sucesso do tratamento – de ter sido o amor desesperado por Lou Salomé e agora transformado em ódio a causa principal do seu desespero, de sua angústia.
- “Uma perspectiva cósmica sempre atenua a tragédia.”
Para bem melhor entender a complexidade de um problema, Friedrich recomenda que dele nos distanciemos, porque isso favorece vê-lo em toda a sua amplitude e profundidade.
- “O ressentimento enrustido torna a pessoa doente.”
E Nietzsche ataca o que considera as causas da obsessão que aflige Breuer. Traça, então, um curto perfil de seu paciente: um leão enjaulado na pele de um cordeiro. E sentencia: “Um pouco de vingança não faz mal a ninguém”.
- “Viver de maneira segura é perigoso.”
Mais uma sentença do filósofo alemão para o estágio atual do desespero e da obsessão que fazem com que o médico austríaco pense em explodir a vida e recomeçar tudo com Bertha. Prescreve mudanças corajosas. Só os mortos não mudam.
- “A consciência é apenas uma película translúcida que cobre a existência.”
Parte da memória e dos processos mentais fora da consciência e vida real vivida pelo inconsciente: é Friedrich Nietzsche explorando os ensinamentos de Karl Hartmann, também filósofo alemão, em sua obra FILOSOFIA DO INCONSCIENTE.
- “A morte perde seu terror quando se morre depois de consumida a própria vida!”
A frase sintetiza duas lições de Nietzsche para Breuer: “Morra no momento certo!” e “Viva enquanto viver!”. Lembra a clássica expressão latina: “Carpe diem quam minimum credula postero”. Ou seja, viva o hoje acreditando minimamente no amanhã.
- “Toda a vida não vivida ficará latejando dentre de você, invivida por toda a eternidade.”
A ideia do “eterno retorno” presente no pensamento filosófico nietzschiano significa, em síntese, que as escolhas que fazemos são para toda a eternidade. Tanto as ações realizadas, quanto as não realizadas. O tempo as torna irreversíveis.
- “Este momento existe para sempre e você sozinho é a plateia sua.”
Breuer indaga, então, se “o eterno retorno promete uma forma de imortalidade”. A negativa de Nietzsche é enfática. Para ele, a vida não deveria sofrer pressões em face de um “outro tipo de vida futura”, que não há. “O imortal é esta vida…”
- “O melhor mestre é aquele que aprende com seu discípulo.”
Eis uma frase extraída de anotações feitas por Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer, em 16.12.1882, e que bem demonstra a alternância de funções por eles exercidas no intenso relacionamento que tiveram.
- “Haja ou não alguém que a acompanhe, uma pessoa sempre morre sozinha.”
É a voz do doutor Josef Breuer em fuga. Ele admite que, em algum momento, algo interromperá a sua trajetória de vida e, então, morrerá sozinho.
- “Construa um novo eu sobre as cinzas de sua vida antiga.”
Ainda em fuga, o médico vienense conversa com Nietzsche e dele ouve mais uma dura sentença: “Aprenda a se tornar cruel”.
- “Uma coisa que me parece clara é a importância de você não se deixar viver pela própria vida.”
O clínico austríaco dialoga com o jovem Sigmund Freud sobre haver descoberto que suas escolhas ficaram no passado, tendo aprendido com o filósofo alemão “a viver agora”.
- “Quanto mais fértil o solo, mais imperdoável é o fracasso em cultivá-lo.”
E, dizendo reconhecer os dons extraordinários de Freud, Josef Breuer aconselha-o, como amigo e mestre, a também “viver agora”.
- “O inimigo real são as mandíbulas devoradoras do tempo.”
É comum querermos culpar os outros pelas escolhas feitas no passado e, com isso, pretendermos minimizar as perdas que o tempo torna irreparáveis. As “mandíbulas devoradoras do tempo” deixarão de incomodar tão logo aceitemos como irreversíveis as nossas decisões irremediavelmente irreversíveis. De nada adianta chorar o leite derramado.
- “Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar.”
Breuer se sente atordoado quando se percebe incapaz de descobrir onde se escondeu “o ‘eu’ que estava enganando o resto de ‘mim’”. Não seguiu a prescrição de Nietzsche talvez porque reconheceu suas limitações. Não se deve querer ser mais do que se é realmente.
- “A relação conjugal só é ideal quando não é necessária para a sobrevivência de cada parceiro.”
Josef considera desconcertante o que lhe dissera Friedrich sobre ser possível salvar o casamento mediante a desistência dele. Esse procedimento, segundo o filósofo alemão, equivale ao entendimento de que o nosso relacionamento pleno com outra pessoa pressupõe nos relacionarmos bem conosco mesmo. Para Breuer, isso soa como tremendo dilema ou “como tentar reconstruir um navio em alto-mar”. Nenhuma relação merece ser mantida se já não há o ganha-ganha entre os atores nela envolvidos.
- “A chave para viver bem é primeiro desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado.”
Eis o reconhecimento do médico austríaco de que houvera feito escolhas erradas quando percebeu ter envelhecido ou sofrido a ação do “apetite do tempo”. Culpara quem não merecia e procurara salvação em quem não poderia isso lhe oferecer.
- “Todos temos nossos cães selvagens ladrando no porão.”
Quando Breuer diz a Nietzsche que ele ainda suspira pelo “toque” de Lou Salomé, ouve do filósofo alemão: “O que sinto agora é raiva”. E complementa: “Ela não é digna de minha raiva. Sinto ódio de mim mesmo, raiva do desejo que me forçou a precisar dessa mulher”.
- “Lágrimas profundas purificam.”
E Friedrich Nietzsche chorou. E admitiu que chorou como nunca houvera acontecido com ele. Josef Breuer então o consola e o encoraja a chorar sempre que for preciso. Sem dúvida, o choro é um dos mais preciosos ingredientes catárticos.
- “Somos compostos de muitas partes, cada qual clamando por expressão.”
Quando Nietzsche soube da recuperação de Breuer, sentiu-se devastado, desapontado por perder a razão de ser junto dele. Chamou esse comportamento de “egoísmo imperdoável”. O médico austríaco discordou do filósofo alemão, lembrando-o de ter sido ele o autor do ensinamento contido na frase em destaque.
FRIEDRICH NIETZSCHE E JOSEF BREUER NUNCA SE CONHECERAM.
Cíntia Victoria
Qual o motivo inconveniente de Breuer ter se apaixonado por Bertha?
Osvaldo Euclides
(ESTA RESPOSTA É DO AUTOR DA POSTAGEM (XYKOLU)
Bertha foi, certamente, a paciente que mais prendeu a atenção do dr. Breuer; a que mais atraiu o seu interesse por salvar vidas; a que mais lhe causou preocupações; a que nele mais provocou estímulos para além da relação médico-paciente; enfim, a que mais o perturbou.
Bertha. Este também era o nome da mãe do dr. Breuer, morta quando ele tinha apenas dois ou três anos.
Nietzsche, em dado momento, vincula uma Bertha à outra. Então, define como “irreal” a paixão do médico pela paciente, a impor-lhe o angustiante estado de espírito, que tanto desespero lhe causava. Rotula tal sentimento como “fantasmas do passado”, ou seja, algo como buscar algum tipo de compensação para o que não tivera após a ruptura do relacionamento com a extinta mãe.
Na “limpeza de chaminé” (terapia da conversa) sobre Bertha, Breuer declara a Nietzsche que “Bertha significa perigo. Antes dela, eu vivia dentro das regras. Agora, flerto com os limites dessa regra… Penso em explodir minha vida, sacrificar minha carreira, cometer o adultério, perder minha família, emigrar…” E tudo isso para recomeçar a vida com Bertha.
A vivência hipnótica de Breuer, sob os cuidados de Freud, além de servir como ensaio ao procedimento sugerido por Nietzsche quanto a tentar salvar o casamento pela renúncia (o real significado de uma relação, por exemplo, só o alcançamos quando dela desistimos, quando a abandonamos, quando a renegamos, quando a perdemos), fê-lo perceber que a opção por Bertha significaria a ruína profissional (perda de clientela, desprezo dos pares), a negação ao amor que sempre nutria por Mathilde, a separação sofrida dos filhos, a perda da vida “tranquila e segura”; tudo isso apenas por uma aventura que, afinal, traduzia-se como forte atração sexual.
Breuer acorda, então, para uma outra realidade, sob os efeitos das palavras de Nietzsche: “Construa um novo eu sobre as cinzas de sua vida antiga”.
Quanto à inconveniência do amor de Breuer por Bertha, leitora amiga, permito-me assinalar que, no quarto parágrafo de NIETZSCHE CHOROU, SIM, eu a apresento como “a paciente por quem o clínico austríaco nutre uma paixão que o angustia, põe em risco a segurança do casamento com Mathilde, uma bela e impressionante mulher, exemplar companheira e nascida – e muito bem! – de respeitável família vienense”. Convenhamos: para os padrões da época, tratava-se de perfil desejado por quase todos os homens de bem e de bens.
Ah, Bertha fez desabrochar o amor de outro médico, que decidiu abandonar o tratamento para pedi-la em casamento.
a) Xykolu