A busca do entendimento do tempo presente é caminho necessário para produção de um novo pensamento político capaz de engajar pessoas na elaboração de uma nova possibilidade de nação diante do golpe-não-convencional perpetrado pela elite dominante de nosso país.
O trabalho político é feito pela ação e pela palavra. Ele é árduo e sinuoso, principalmente quando se pretende democrático, porque requer simultaneamente a participação direta e indireta, de forma representativa, dos sujeitos envolvidos em sua condução. Para tanto é necessário “perder tempo” para saber ouvir interpelações, propostas e demandas das populações. Além disso, é necessário perder tempo para entender acontecimentos e palavras escritas em versos e em prosas pela cultura nativa. E como advertência, é preciso ter muito cuidado com os aproveitadores ideológicos, “lobos em peles de carneiro”, que emergem na ação política com intuito de destruir as compreensões e constatações encontradas no caminho por meio da falsificação da verdade com o objetivo de defender seus interesses particulares, em última instância, como instrumentos de dominação. Portanto, é preciso olhar para a realidade concreta, verificar como a nossa existência humana está sendo produzida pelo nosso trabalho e dessa visão elencar as contradições e injustiças – as alienações – para corrigi-las por meio da ação política.
Por exemplo, no Brasil, os conflitos de interesses nem sempre se apresentam como tal. As elites abastadas buscam dar a seus interesses particularistas uma feição universalista para que sejam aceitos como legítimos pela maioria da população. É a repetição daquela brincadeira de criança “enganando o bobo com a casca do ovo”. Os banqueiros não dizem que defendem a elevação da taxa de juros para aumentar o lucro de seus bancos, mas para “combater a inflação”. O mesmo ocorre com os partidos políticos que defendem os interesses das elites brasileiras: dos donos da soja, dos donos do dinheiro, dos donos da mídia. Portanto, na análise da realidade é preciso decodificar tais discursos se quisermos chegar aos motivos mais profundos que governam a ação de tais partidos e instituições.
Para Armando Boito, doutor em sociologia, a causa principal da crise brasileira atual é o conflito distributivo. A política dos governos petistas – que representava uma frente composta por empresas brasileiras inseridas em vários ramos da economia, por parte da classe média baixa e por grande parte dos trabalhadores da cidade e do campo – consistia em primeiro lugar no estímulo ao crescimento econômico com forte participação das empresas nacionais em detrimento de interesses do capital internacional. Este é um dado importante. Em segundo lugar, esta política contemplava também a distribuição de renda e a melhoria de condições de vida das classes populares. E por fim, implementaram ainda uma política cultural participativa favorável aos movimentos feministas, negro, lgbt, entre outros. Na área externa, os governos dessa frente neodesenvolvimentista implantaram a política externa Sul-Sul, privilegiando o estreitamento de relações com países da América Latina, da África e da Ásia, abandonando a política externa dos governos Fernando Henrique Cardoso, de alinhamento automático e passivo com os Estados Unidos.
Logicamente uma política dessa envergadura não agradava forma alguma o campo político dos detentores do poder. O núcleo neoliberal puro e duro – que também se comportava como uma frente de classes, tendo à frente o PSDB e o DEM – era dirigido pela fração da elite brasileira integrada ao capital internacional, cujas propostas de política econômica e externa preteriam interesses de grupos econômicos brasileiros integrantes da frente neodesenvolvimentista. Esse núcleo neoliberal defendia a venda ampla das empresas estatais para empresas estrangeiras; realinhamento passivo com os Estados Unidos; refreamento dos ganhos reais obtidos pela classe trabalhadora ao longo dos últimos anos. Essa frente contava com o apoio eleitoral da classe média alta.
A partir de 2011, com o prolongamento da crise internacional do capitalismo, essa frente neoliberal intensifica a sua ofensiva contra o governo Dilma Rousseff. Ao perceberem o crescimento econômico interno em declínio, viram a oportunidade de lutar contra as medidas de radicalização do neodesenvolvimentismo tomadas pela presidente Dilma, a saber, a redução inédita da taxa básica de juros, novas medidas de protecionismo e depreciação cambial, entre outras. O professor André Singer escreveu excelente artigo sobre o tema: “Não cutucar a onça com vara curta”. E justamente nesse mesmo período, as contradições presentes na frente neodesenvolvimentista afloraram no momento em que o sindicalismo incrementou a luta por obtenção de ganhos salariais, elevando suas reivindicações em 2012-2013, fazendo com que vários empresários retirassem seu apoio ao governo. Além disso, nesse período, os beneficiados com as medidas democratizantes do acesso à universidade – Pro Uni, Reuni, Fies – como novos diplomados não encontraram no mercado de trabalho os empregos que julgavam garantidos. Essa insatisfação foi um dos motivos das ruas de 2013.
Assim, o cenário material estava pronto para o desfecho do golpe-não-convencional. Era preciso apenas criar as condições na percepção da sociedade para a demonização do governo Dilma. E esse trabalho coube “ao porco garganta”, para utilizar da imagem de George Orwell no seu best-seller A revolução dos bichos. O mantra do golpe foi a luta contra a corrupção, divulgado incansavelmente pelos meios de comunicação. Mas o obtivo real é a realização de um pesado ajuste fiscal que vise assegurar ao capital rentista o pagamento dos juros da dívida pública em detrimento dos avanços sociais implantados nos governos democráticos passados; a ampla abertura com a privatização da economia brasileira para atender os anseios do capital internacional; cortes de direitos trabalhistas e sociais, duramente alcançados em nossa recente história democrática.
Esses são alguns elementos para colaborar com nossa reflexão. Mas, “apesar de você”, ainda tem gente que acredita que o golpe foi perpetrado para debelar a corrupção.