– Cumpade, ind’agora eu vi um negoço esquisito!
– Compadre, era um caminhão…
– Tava caminhano não, cumpade. Tava era correno.
– Então, compadre, era um automóvel…
– Era oito ou nove não, cumpade. Era só um.
Conversa de matuto,
segundo o “seu” Expedito, meu pai.
Estamos num qualquer ano da primeira metade do século passado. O sertão de meus avós ainda depende exclusivamente da generosidade da mãe-Natureza para sobreviver. Há momentos de carência, também os há de fartura.
Os ares da modernidade, já bafejando outros polos de convivência humana – alhures –, não chegavam até lá, não entravam nos casebres de taipa e de chão batido, nem levantavam a poeira das estradinhas carroçáveis. E, se nos centros urbanos os meios de comunicação eram precários – a voz do rádio causava admiração e temor a muita gente tida como instruída –, os avanços da humanidade não ultrapassavam sequer as porteiras das fazendas. Na cabeça do incrédulo sertanejo, ressoavam como contos da Carochinha ou como despropósitos do ferrabraz.
A cultura ainda se mantinha graças à oralidade. E aí se incluía o carnaval, tido e havido como apenas uns dias de alegria mundana. E que Deus seja louvado! Para todo o sempre. Amém.
Pois bem.
Entre o final da tarde do sábado e o início da manhã do domingo, enquanto o carnaval – alhures! – invadia a alma de alegres foliões, a notícia de um fato insólito, fervilhando na alma de viajantes contumazes, espalhava-se pelo sertão ora abençoado pelo generoso inverno que o revestia de uma plumagem verde-Vida a emanar, não apenas graciosidade, mas também fertilidade: as plantações prometiam boa safra.
A precoce passagem – desta para a melhor – de um saudável jovem da família mais bem aquinhoada da região já seria motivo bastante suficiente para abalar a tranquilidade de todos que, de uma forma ou de outra, sabiam de sua prendada existência.
Agora, o assustador retorno – da melhor para esta –, passada cerca de uma hora do desligamento fatal, tempo considerado por ele – o protagonista da artimanha do tinhoso, segundo muitos – suficiente para negociar com a sempre insensível Morte um acordo que lhe daria – e que acabou dando – a inusitada sobrevida, isso sim é que causou o maior rebuliço nunca antes verificado naquelas paragens. E os mais velhos isso atestavam. E nenhum genial carnavalesco da atualidade – isto eu lhes asseguro, brincantes leitores(as), – demonstra ter cabedal capaz de “enredá-lo” em toda a sua essência: jovem defunto se levanta da urna fúnebre, mais vivo do que antes, para o espanto de familiares, amigos, carpideiras e até amantes.
Ao morto-vivo não foi dado o direito de expor as condições do incomum acordo. Embora o inesgotável poder de criação das pessoas tenha dispensado alguma coloração específica ao inaudito quadro. Segundo elas, o jovem teria, a rigor, convencido o seu algoz quanto ao desperdício que tão inoportuno ato causaria, em face de ser ele herdeiro único de uma boa fortuna que, assim, estaria fadada a sofrer a depredação do abandono. E o que dizer das moçoilas casadoiras sem a opção de um promissor jovem mancebo? E o que dizer da negação à vida – se a razão da morte consiste na existência da vida – de algumas belas e saudáveis crianças que não mais seriam sequer reproduzidas pelo cerceamento prematuro da sua?
Então, a sempre irredutível Morte, no alto de sua condição de cega, surda e muda, teria aquiescido em, no jogo da vida, proporcionar-lhe um tempo extra, adicional, complementar. Uma prorrogação por igual tempo que ele já houvera consumido.
– Ora, mesmo assim, você vai me levar ainda muito jovem… com menos de cinquenta…
– É pegar ou largar!
Ele pegou.
Passaram-se alguns carnavais. Tudo mudou. O mundo evoluiu. A humanidade também. O jovem amadureceu. Casou-se. Teve filhos. Tornou-se órfão. Herdou o que lhe era de direito. Deu à propriedade um toque todo seu. Encaminhou os filhos. E, às vésperas de um carnaval, desapareceu. Sumiu, sem deixar pistas.
E o sertão novamente vivenciou uma insólita experiência.
No imenso painel de controle da irrecorrível Morte, uma luzinha tremeluziu e apagou-se aqui e outra tremeluziu e acendeu lá. Lá onde o vento faz a curva. Lá onde o capiroto perdeu as botas. Lá nos cafundós da parte sul da Amazônia, num vilarejo cortado ao meio por uma estrada malconservada que servia ao escoamento de produtos da região. E ela intuiu: – Interessante. Ele pensa que vai conseguir fugir de mim. E o destino do quase cinquentão estava então selado.
Após alugar um quartinho nos fundos do prédio de um posto de gasolina bem movimentado porque estrategicamente estabelecido, ele começou a pôr em prática o plano que desenhara para uma nova vida. Comprar um terreninho ali por perto e… seja o que Deus quiser!
Já era quase noite do sábado quando atravessou, com cautela, a rodovia e recostou-se no balcão de um bar e restaurante de iluminação anêmica e ainda vazio. Pediu uma bebida e foi atendido. Andou até a mesa mais ao fundo, sentou-se e sorveu o primeiro gole. O ar quente se encheu de sons que sempre ouvira em épocas como esta: marchinhas de carnaval. E a saudade o fez chorar.
Não percebeu a entrada de alguém que também recostou-se no balcão, pediu uma bebida, foi atendido e caminhou até a mesa mais ao fundo, onde ele se encontrava. Foi surpreendido com a pergunta:
– Posso sentar-me?
Ao responder – Pois não! –, percebeu que sob o manto enegrecido que, encimando a cabeça, escorria ao longo do corpo de tão horripilante visão cadavérica, havia um rosto desfeito e emagrecido, olhos fechados e cobertos com um véu, um esgar sombrio… Amedrontado, correu desesperadamente para fora do bar e, ao atravessar a rodovia, uma carreta transportando madeira em toras arremessou-o a alguns metros, já sem vida.
E o som vindo do bar ainda podia ser ouvido pelos curiosos que logo circundaram o corpo do inditoso homem: “Ó jardineira porque estás tão triste / Mas o que foi que te aconteceu / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu”.
E Thanatos passou a cuidar de outros arredios foliões. Isso também compunha o seu lúgubre ofício.