– Xykolu, meu velho amigo! Sinto-me na obrigação de, perante a confraria aqui reunida e antes que se iniciem os ordinários ofícios, responsabilizá-lo por me haver estimulado a ser leitor do Segunda Opinião.
– Bravo, amigo! Bravo! Que belo exemplo a ser seguido por todos!
– Já tenho como compromisso de final de semana. Tão logo você posta o convite à leitura de sua crônica, empreendo uma viagem pelos meandros das muitas publicações do jornal. Gosto de ler o que você escreve. Considero todos os outros textos também muito bem escritos, sempre assentados em boa base argumentativa. Discordo de alguns, obviamente.
– Isso é muito natural. Não há quem consiga convencer a todos, impor sua verdade. Ingênuo será quem se pretenda diferente. Sempre há os que não comungam com as nossas ideias. Para o leitor, o mais importante é que saiba pôr em prática o seu senso crítico, além de extrair o que entender como válido para tornar mais abrangente o conhecimento que detém sobre o que ocorre lá fora e que pode impactar a sua vida e a de seus entes queridos.
– Olha, Xykolu, eu também já adquiri o hábito de ler as suas crônicas… e os comentários do Cleyton do Zé Maria…
– Doutor Cleyton…
– Pois é, o menino virou doutor. E escreve bem o filho do futuro prefeito de Amanaiara…
– Amigo, a bem da verdade, eu muito apreciaria se você nos fizesse alguns… três, para ser preciso, esclarecimentos. O primeiro. Na sua última crônica, “Voz, viola, vida”, o poema, cujos versos bem poderiam ter sido do violeiro sofrido, adquiriu a forma de uma taça “só bojo e base”…
– Alguém identificou como sendo um copo para servir uísque; mas eu prefiro essa sua percepção.
– Você conseguiu isso de propósito? Você se propôs a criar aquela imagem?
– Não. De forma alguma. Já na produção original, de março de 2014, não lhe dei uma forma específica. Ao reescrever todo o texto, o poema-desabafo também passou por alterações…
– Que não lhe afetaram a essência, como você esclarece no final.
– Isso. A essência manteve-se preservada. Quando achei que houvera concluído todo o trabalho de reconstrução, o copo ou taça saltou-me aos olhos. Apenas com dois pequenos senões. O verso de abertura mostrou-se curto em relação ao conjunto, prejudicando a borda. Recorri, então, ao advérbio “sempre”, e o que era “Há quem pretenda…” passou a ser “Sempre há quem pretenda…”. O mote proposto, agora também modificado, compunha, no contexto, um verso demasiadamente longo, descaracterizando a base. Dividi-o em dois, cujo contraste de extensão – o primeiro menor que o segundo – deu o arremate pretendido. [Escrevo num guardanapo:
que a pior sorte do mundo
pode ser bem pior do que morrer!].
– Já na crônica em que você faz poesia a partir de uma pichação, se não me falha a memória, “Gota cruel!”, a forma do desfecho é proposital…
– Sim. A gênesis desse poema é interessante. Ao ver o “picho”, entendi que teria de fazer algo com base nele. E devia referir-me a algum tipo de envolvimento amoroso que causara gravidez indesejada. Por alguns dias, as ideias – múltiplas, multiformes, multicoloridas – fluíram sem, contudo, compor um todo que merecesse maior atenção. Num sábado à noite, quando todos saíram para o usual passeio no shopping, a solidão e a cerveja fizeram a química perfeita. O verso inicial, eu o escrevi de primeira; ele ganhou o mundo do jeito que nasceu. A terminação em “lua” me fez antecipar algumas rimas: rua, nua, tua, sua… essa última com dupla possibilidade – pronome possessivo feminino e flexão do verbo “suar”, ambas de valor semântico bastante adequado ao propósito. A construção do primeiro quarteto não me exigiu muito. Fluiu naturalmente. Mas o caminho ainda estava pela metade. Pensei com meus botões: agora ou é mar ou é céu. Optei pelo céu, palavra com que concluí o quinto verso, o início do segundo quarteto. E aqui também tentei antecipar algumas rimas que me orientassem na jornada. Baco soprou-me ao ouvido: véu, mel e cruel. Aceitei parcialmente a sugestão, pois quando cheguei ao oitavo verso, percebi estar tudo preparado para o clímax: o ato infiel! O prazer sentido naquele momento é indescritível. Reli o que havia produzido e encantei-me. Promovi alguns ajustes. E preparei-me para o desfecho. O jogo das interjeições – ah!, oh!, ah!, oh! – me pareceu perfeito para sugerir o ato em si. A sequência dos verbos – traio, liquefaço-me, reproduzo-me, arrependo-me – em primeira pessoa e em tempo atual servia perfeitamente ao remate: gota cruel! Mas como fazer de forma diferente, expressiva? Ora, “gota” tem quatro letras; “cruel”, dividida em sílabas, tem três e duas; e o ponto de exclamação. A forma ideal! Deu no que deu. E o artista então olha para a sua criação e alça voo ao Olimpo, onde brinda com os deuses à base do mais puro néctar.
– Bravo, amigo! Bravo!
– Há clima mais sugestivo para um brinde, amigos?
– Brindemos, pois. À nossa saúde!
– À nossa saúde! – E todos isso desejamos.
– À Lava-Jato! – E todos ouvimos uma voz fatigada vinda de um solitário senhor, sentado à mesa mais interna do ambiente.
Levantei-me, fui até ele, cumprimentei-o e brindamos a seu modo.
– Xykolu, meu velho amigo. O terceiro e último esclarecimento. Na crônica em que o jovem resiste aos perigosos encantos de sua parceira de faculdade, há uma passagem em que ela diz: “Quem ma deu de presente…” Esse “ma” existe mesmo ou é invenção sua?
– Claro que existe! Podemos encontrar essa forma em Machado, em Alencar. Apenas entrou em desuso por ser uma estrutura excessivamente clássica, nada popular, carregando até um pouco de pedantismo.
– É o mesmo que ocorreu com a segunda pessoa do plural, o “vós”, que acabou sendo substituído pelo “vocês”?
– Isso. E também com a mesóclise, ou seja, o uso do pronome no interior do verbo no futuro. A língua é viva, é dinâmica. Evolui. Voltando ao “ma”, temos aí uma palavra surgida da junção de outras duas. Tão pequena e tão complexa. Agora, prestem atenção, acompanhem o que vou escrevendo no guardanapo. O pronome oblíquo átono não-reflexivo de terceira pessoa LHE e os pronomes oblíquos átonos de primeira e de segunda pessoa do singular (ME e TE) podem contrair-se com os pronomes oblíquos átonos não-reflexivos de terceira pessoa O e A, numa forma que represente ambas as funções sintáticas (MO/MA, TO/TA, LHO/LHA), embora esse emprego se restrinja ao uso literário ou a um registro mais formal. Isso é previsão gramatical. Assim, no segmento de frase em questão, o “ma” resulta da contração de dois desses pronomes, quais sejam: ME, objeto indireto ou pessoa – Ivna, a falante – a quem se destinou o presente; e A, objeto direto, a obra Os sete minutos, ou o presente dado. Os dois complementos são exigidos pelo verbo DAR (“deu”), cuja transitividade se manifesta de forma direta (sem preposição) e indireta (com preposição). Quem dá, é certo que dê algo (objeto direto) a alguém (objeto indireto).
– Mas há outra forma mais simples de dizer…
– Sim. “Quem a deu para mim de presente…”
– E por quê…?
– É quase certo dizer que a expressão, na forma como consta do texto, não reflete o que teria sido a conversação no plano real. Em colóquios de qualquer natureza, comumente não se procede assim. A espontaneidade e o relaxamento concorrem para um linguajar mais simples, mais vulgar, menos polido e menos clássico. No caso, o autor empregou tal forma por dois motivos, quais sejam: ratificar o nível intelectual dos personagens e interlocutores; e elevar o nível do irrealismo de que se reveste a trama e, por extensão, o próprio texto.
– Podemos agora iniciar os ordinários ofícios?
– Sim. À Lava-Jato, pois!
– À Lava-Jato!
E o velho senhor de voz fatigada acompanhou-nos à distância, com um leve sorriso nos lábios.
Maria Isabel
Sua habilidade com as palavras, aliada a uma cultura geral que abrange o mundo de interesses de nós todos, seus leitores, faz com que você “passeie” por nosso cotidiano de forma leve e alegre e, o melhor, trazendo aulas preciosas de nossa Língua Portuguesa!! Obrigada!!