Ainda não havia sequer tomado café da manhã quando acordei naquele sábado em 2 de março de 1996. Chovia em nossa casa de praia – como sempre acontece em março e suas águas. Do que me lembro como uma criança de 10 anos incompletos, a fome passou bem na hora que vi a televisão ligada. Um nó no estômago e um aperto no coração chegavam enquanto ainda esfregava os olhos com sono e não entendia as imagens que mostravam apenas uma vista aérea de um morro esverdeado, com pessoas no meio da mata e alguns grandes pedaços de metal retorcido espalhados. Enquanto isso, minha mãe e minha tia tentavam tranquilizar: “parece que só o Dinho escapou!”. As “águas de março” eram, naquele dia, feitas das minhas lágrimas.
Era demais pra mim tentar processar aquela tragédia. O avião que levava aquela que foi praticamente minha primeira banda favorita na vida , que tantas alegrias proporcionava com suas piadas sacanas – que eu nem entendia àquela idade – havia se chocado violentamente contra a Serra da Cantareira, no interior de São Paulo pouco antes do pouso. Posteriormente fora descoberto que uma falha estúpida de comunicação entre torre e piloto havia feito o pequeno Learjet desviar absurdamente seu curso devido à baixíssima visibilidade do céu e condições meteorológicas na noite anterior.
As lágrimas, a dor, aquela agonia inexplicável para uma criança eram inaceitáveis. Mas a perda era inevitável. Dali por diante, guardar com todo o carinho aquela banda em meu coração foi algo de extrema importância. Era complexo e complicado entender um fenômeno como a morte (sempre inaceitável), mas a dor passou tempos depois e a riqueza do “besteirol” que alegrou a infância de tantos brasileirinhos só veio ser percebida em seguida. A irreverência dos Mamonas era muito mais que os palavrões gratuitos, do que as baixarias: os caras estavam à frente de seu tempo, e quebraram paradigmas na música, na mídia, na sociedade e no mercado cultural. Vou tentar elencar alguns motivos a seguir.
Pra começar, o tal “politicamente correto” nem existia. Não havia tanta preocupação com isso, pois as crianças se divertiam muito com as figuras carismáticas dos cinco rapazes. Essas representações se sobrepunham a qualquer jugo de moralidade que tentassem vir em seguida. Claro que foram criticados, mas mesmo cantando e repetindo palavras como “suruba” (que eu só vinha aprender anos depois o que significava – é, naquela época não tinha Google nem XVideos…), “bosta”, “merda” e tantos outros palavrões, tudo era visto como diversão e inocência. Nem mesmo um álbum cuja capa estampava um par de seios avantajados era problema: a “imoralidade” era perdoada, pois os Mamonas eram mais que isso. As crianças não viam maldade, e nem por isso cresceram traumatizadas. Afinal, os cinco rapazes eram certamente grandes crianças se divertindo e levando alegria a todo o Brasil.
Brasil, este, sempre combalido e triste: nosso país vivia uma época não muito diferente de hoje. Um governo novo de baixíssima aprovação, apelando para privatizações e envolvido em escândalos de corrupção prontamente abafados pela mídia (soa familiar 21 anos depois?). Tal como foi o campeão Ayrton Senna (falecido dois anos antes), os Mamonas foram um indispensável alívio cômico dentro de uma realidade nacional que, em si, sempre foi uma trágica piada. Porém, todos riam juntos – e o mais bacana era isso: rico e pobre, sem distinção, negro e branco, do mais fervoroso católico até o ateu ouviam Mamonas. Nem que você não admitisse – achando que era besteira – mas com certeza já riu ouvindo Pelados em Santos ou Chopis Centis.
Sua criatividade não tinha limites – assim como a zoeira. Tirar sarro da cultura pop sem nenhuma preocupação ou vergonha era uma de suas especialidades. Não escapava nem Batman, Star Trek, Robocop ou Chapolin. Muito menos a deliciosa brincadeira com marcas famosas como Reebok, Fiorucci, Volkswagen e tantas outras. Eram os reis (e o terror) dos programas de auditório no domingo, tirando sarro e literalmente detonando com tudo e todos no Faustão, no Gugu e onde quer que passassem. Dinho, Bento, Samuel, Sérgio e Júlio tinham o talento e sobretudo o humor na veia, bem antes dos Mamonas mesmo nascerem, quando ainda eram a banda Utopia e tentavam ter uma postura mais pro lado da seriedade e engajamento de um Legião Urbana. Felizmente, a Utopia não vingou: ganhamos a banda mais palhaça e querida do Brasil.
Além do quê não eram meros “doidinhos” tocando seus instrumentos. Todos os cinco eram músicos exímios, e isso se refletia nas sutis influências sonoras no instrumental de suas músicas. Bento arrepiava nos solos de guitarra. Sérgio era um baterista de mão cheia, acompanhado pelo baixo marcante de seu irmão Samuel. Júlio, além de bom tecladista, cantava em algumas músicas e completava a esculhambação contracenando com Dinho. Este, então, era quase um Mike Patton brazuca, pois suas imitações e brincadeiras com a voz eram ricas e irresistíveis. Nos arranjos de suas canções, mesmo para os ouvidos menos apurados, é possível ouvir claras citações musicais em passagens que lembram bastante bandas clássicas como Rush, Metallica, Dream Theater. Em outros momentos de puro escárnio e deboche com a voz caricata de Dinho, até mesmo Belchior e seu jeito peculiar de “cantar falando” não escapa. Era, e sempre será, de uma simplicidade e genialidade espetaculares!
Infelizmente, perdi o único show que fizeram no estádio Castelão na época – fato do qual me arrependo até hoje. Não pude ter mais nenhuma oportunidade de vê-los, pois foram apenas nove meses de sucesso. O tempo de uma linda gestação, da qual brotou a vida de uma banda cheia de alegria e que partiu cedo demais. Deixou órfãos tantos pequenos à época que, como eu, sem dúvida tiveram uma infância muito mais feliz e cheia de risadas. Um cometa alegria de carona numa Brasília amarela que rasgou as estrelas e fez um rebuliço de proporções cósmicas no coração do Brasil.