As discussões sobre a juventude e o gênero foi e tem sido uns dos principais temas abordados pela cinematografia contemporânea. E, no Brasil, essas mesmas temáticas também têm sido bastante exploradas nas mais diferentes perspectivas. Uma dessas veredas é tomada pela assinatura da veterana Anna Muylaert, que, com seu distinto “Mãe só há uma” (2016)*, discute não apenas as questões acima citadas, muitas vezes tomadas por meros tópicos frasais, mas uma estrutura de afirmação do cinema como uma grande plataforma na difusão de debates.
Não que o 4º longa metragem da realizadora paulista se exima da sua dimensão política. Na verdade, todo filme acaba político se tornando. Mas essa vertente ganha forma na estória contada através da forma generosa como Muylaert decide apresentá-la. No caso, acompanhamos Pierre (Naomi Nero), um jovem de 17 anos que descobre ter sido roubado de uma maternidade anos atrás e acaba voltando a viver com a família biológica. Com um núcleo narrativo bastante simples, o longa desagua naturalmente entre a aridez do mesmo debate político mencionado no parágrafo anterior.
Essa inserção vem em um tom de uma cinematografia que mais sugere do que impõe. Esse, à propósito, é outro traço desse cinema que se pensa antes de qualquer coisa a partir do olhar do espectador que vai também construindo a narrativa apresentada na tela. É claro que o filme enquanto forma e conteúdo ali já está dado. Entretanto, levando em conta forma e sentido, nesse trabalho há uma série de questões desdobradas.
A discussão sobre classes sociais e o estar de um arquétipo do brasileiro de classe média esteve muito evidente no antecessor de “Que Horas ela Volta” (2015). Aqui, o foco temático do filme se mostra muito menos definido. E isso é algo que soa muito bem à obra. Porque ficamos com a sensação de que Ana não parecia estar querendo nos convencer a respeito de algo. É claro, a juventude é certamente o eixo central do longa. Mas apesar de seus contornos dramáticos, ele não deságua num exacerbado tom de melodrama de que aquele outro trabalho inevitavelmente acabou se valendo.
Nessa estória, as personagens parecem muito mais fluidas também. Continuamos na esfera dessas figuras da classe média brasileira. Entretanto, elas nos surgem de uma forma muito menos definidas. Nós temos Pierre, sua mãe, irmã e os amigos, mas essas figuras se inserem numa proposta desconstrução fílmica onde o naturalismo da performance de cada ator sublima o ruído contido nas interpretações estereotipadas do brasileiro em nossa cinematografia.
É por isso que Pierre nos soa tão interessante. Ele é um rapaz de 17 anos que em meio a um processo de descoberta da sua própria representação identitária, vai tendo de se encaixar a uma nova realidade junto à sua família biológica. Que pode não ser aquilo o que ela se apresenta no início do longa. A crise é, portanto, não apenas um recurso da forma e técnica fílmicas. Ela é um sintoma de um Brasil ainda e talvez sempre complexo, onde as forças que o fazem ser o que é seguem ainda veladas em inúmeros aspectos.
O conservadorismo é um deles. E quando Ana decide pautar o tema através da relação entre o jovem e esse mundo que o cerca, ela abre uma importante janela de discussão sobre as arestas que limitam a nossa sociedade. E assim como a diretora, nosso olhar é o olhar de Pierre. Sim, trata-se de se assumir um lado. Mas não em uma perspectiva polarizada. Antes, olhamos para o filme pelos olhos desse personagem que vive um turbilhão de dúvidas, incertezas. Que também pode ser tudo o que ele quiser ser. Ele pode beijar garotas, garotos, usar jeans ou vestido. Pierre nos vem como uma figura-estandarte. Um ideal de que podemos ser o que quisermos, e ponto.
Um ponto de fuga para um longa de proposta sincera e necessária na atual conjuntura cinematográfica brasileira. Uma vez que “Mãe só há uma” reúne os índices que o cinema nacional precisa seguir endossando: a naturalidade no trato dos temas e o exercício da técnica e forma fílmicas como uma premissa.
Premissa que ganha força na multiplicidade de um fazer audiovisual que se engrandece indiscutivelmente. Seja pela ficção documentada de um Adirley Queirós (Branco Sai, Preto Fica), ou um Marcelo Pedroso (Brasil S/A)*. Seja pela originalidade e criatividade de um cinema de gênero (e dele mesmo liberto) de uma Juliana Rojas (Sinfonia da Necrópole) ou Thiago B. Mendonça (Jovens Infelizes). Como saldo, temos a prática de um cinema nacional autêntico e potente, assim como a verdadeira cinematografia foi e sempre deverá ser.
* “Mãe só há uma” e Brasil S/A seguem em cartaz no Cinema do Dragão – Fundação Joaquim Nabuco. Vale a pena conferir.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Mãe só há uma
Tempo de Duração: 80 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2016
Gênero: Drama
Direção: AnNa Muylaert