Permitam-me, antes de mais nada, fazer um depoimento [não tão grave quanto o dos envolvidos no mais recente escândalo eletrônico que abalou as estruturas do nosso Congresso Nacional¹] de muita significação para mim, o depoente (desculpem-me, mas como essa palavrinha estava a azucrinar-me, exigindo, impondo até, a sua participação no texto, usá-la agora equivale a desvencilhar-me de um problema… e, convenhamos, quanto mais cedo, melhor).
Pois bem. As circunstâncias me fizeram, num passado medianamente distante, afastar-me da categoria leitor, atraído que fui pelos apelos nada ortodoxos de uma outra classe: a de ledor. E, por acaso, há alguma diferença entre leitor e ledor? Olha, aconselho não consultar dicionários, pois com certeza a equivalência desses elementos lá está. Um é sinônimo do outro, ou seja, aquele que lê, para ambos os vocábulos. Mas, dá para acreditar tão-somente nessa fonte de pesquisa – válida em tantos outros casos, sim, menos no que se trata aqui – se, para o verbete “ler”, vai-se encontrar lá esta pérola: Percorrer com a vista o que está escrito, proferindo ou não as palavras, mas conhecendo-as? Pra encurtar a conversa, meu caro leitor (ou seria ledor?!), retomemos o meu depoimento, convencionando possuírem tais palavras alguma diferença: certo, são gêmeas, mas não univitelinas!
Enquanto fui estudante – mesmo pertencendo a família de parcos recursos, residindo numa cidadezinha do interior –, pude celebrar boas amizades com autores consagrados, prosadores de valor reconhecido pela crítica literária brasileira, tais como José de Alencar, Raquel de Queiroz, Machado de Assis, Euclides da Cunha, entre outros. Lógico que, entre um clássico e outro, nada melhor que um gibi; afinal, duro com duro não se constrói muro, diz a sabedoria popular. E o que fazia com que eu procurasse a leitura de textos daquele jaez? A minha formação salesiana, nos anos sessentas. Se, para muitos dos meus contemporâneos, a leitura se fazia por imposição, com o objetivo de apenas cumprir uma atividade escolar, comigo o sentido era bem outro: um misto de lúdico – porque me sentia participando das tramas que se entrelaçavam pelos meandros do enredo, e isso representava, pelo menos para mim, um jogo: umas vezes, intrigante; outras vezes, apaixonante; todas as vezes, prazeroso – e de fuga (isso mesmo, fuga!) da minha realidade, por meio do contato com outras realidades, mesmo que desrealizadas (afinal, eram textos literários). E eu até gostava de antecipar desfechos, de certa forma já trabalhando um texto meu, invisível, que a modernidade poderia ter rotulado de intertexto virtual.
Veio, então, a fase das vacas magras. E eu virei trabalhador. O tempo passou a conspirar contra o relacionamento saudável que sempre estabeleci com os personagens criados por Raul d’Ávila Pompéia, Manoel Joaquim de Macedo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e tantos outros. Agora, servidor público por profissão e analista de processos por função, a minha leitura mudou completamente. Aí deixei de ser leitor; transmudaram-me em ledor. Interessam-me os artigos, parágrafos, incisos e alíneas de resoluções baixadas pelo Conselho Monetário Nacional, de circulares editadas pelo Banco Central do Brasil. Que chique! Diria você, meu querido leitor. Que choque! Digo eu. A leitura aqui é ancorada no tecnicismo, ou seja, vale quanto pesa… ou melhor, vale pelo que é. A interpretação dá-se sob a égide da horizontalidade. Você já ouviu falar em bitolas? (cuidado! não cabe aí pronúncia inglesa… não vá estragar a minha pergunta!). Pois é isso mesmo: o entendimento do texto tem as suas medidas, as suas bitolas, não me deixa alçar voos… Senão, a peça recursal vai alcançar-me, impiedosamente, pela presunção… e, no processo, na lide, no litígio, na controvérsia, não cabe presumir: delineia-se o fato nos seus exatos contornos, apuram-se as responsabilidades em bases solidamente erigidas e imputam-se apenações justas aos comprovadamente envolvidos; à autoridade competente, cabe o veredito, a decisão. Até o meu texto mudou… você percebeu? O estilo já não é o mesmo. Perdeu em jocosidade, em graça, em brilho. Deixou de ser moleque. Aceitou aprisionar-se por um modelo imposto, pobre de palavras simples, rico de expressões que só valem no âmbito do processo. Mudou minha leitura. Mudou minha escritura. Deixei de ser leitor. Passei a ser ledor. Que pena!
[Pausa para reflexão:
“A história da leitura constrói a história da escrita.” (Graça Paulino, em Práticas de seleção de leituras).
“Minha leitura (…) pode ser minha alegria, minha tristeza, minha aversão às cenouras, minhas leituras anteriores, os textos que escrevi, meu dia de ontem, minha barba por fazer, as marcas da minha infância, meu filho, (…) minha fonética articulatória, minha psicanálise, minha filosofia, eu.” (Jorge Wanderley, em Um leitor).
“(…) com os princípios da obra aberta, de Umberto Eco, momento em que se instaurou a perspectiva segundo a qual o papel do leitor deixava sua passividade para adquirir um poder de criação, ou re-criação ou colaboração com o ato criativo, na literatura.” (Idem, ibidem).].
Bendigo o dia em que ingressei no Curso de Letras da UFC. A partir de então, venho tentando, com uma razoável obstinação, recuperar um pouco do terreno perdido, resgatar a minha fase de leitor, o prazer de ler, de poder verticalizar a minha interpretação textual, de aguçar a minha capacidade crítica diante do pensamento revestido pelas palavras em movimento, em correlação intrínseca. Compensar a leitura autômata e rígida dos manuais, das normas vigentes e aplicáveis a específicos casos. Alavancar a minha leitura literária. Assim, releio Machado de Assis, entremeando a leitura das suas obras de valor incomensurável com a da poesia pétrea e sob medida de João Cabral de Melo Neto (que agora me faz lembrar uma declaração em entrevista concedida poucos meses antes do seu passamento: Não gosto mais de literatura; literatura é essencial para quem lê; como não consigo mais ler, perdi o interesse por ela. Amargo, mas verdadeiro; sentido, mas sincero). Seguem Álvares de Azevedo, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Manuel de Oliveira Paiva. Aventuro-me pelas trilhas perigosas e vitais do Grande Sertão: Veredas, obra prima de Guimarães Rosa (Confesso que de lá saí – se é que realmente saí – mais perturbado que Riobaldo quando desvendou, embora tardiamente, o mistério de Diadorim).
Cruzo com um Prêmio Nobel: o português José Saramago. Comprometo-me a reler Ensaio sobre a cegueira. Espetacular. Profundo. Crítico. Arremessou-me, não sei bem por quê, para uma outra obra impressionante, de Morris West: O navegante. Lido e relido.
Atualmente, após sorver – sem me enfastiar – a singeleza da compreensão da vida, pela aceitação plena dos seus reveses, manifesta em A última grande lição – o sentido da vida, de Mitch Albom (uma oportuna indicação de minha professora de Teoria e Prática de Ensino de Literatura Vernácula), eis-me diante, mais uma vez, de um cronista brasileiro, na mais ampla acepção que se queira dar ao termo. È vero? Sì, è Veríssimo. Isso mesmo. Só que com “V” maiúsculo. Ou melhor, com todas as letras em caixa alta – VERÍSSIMO. Luís Fernando VERÍSSIMO. Primeiro, foi A versão dos afogados, uma senhora coletânea de crônicas com data marcada, ou seja, com a indicação das datas de suas publicações em jornal portoalegrense. Depois, As mentiras que os homens contam. Em seguida, Comédias para se ler na escola, textos selecionados pela escritora Ana Maria Machado, com o objetivo de tornar o humor de Veríssimo em (…) o melhor antídoto para quem não gosta de ler – ou melhor, para quem ainda não descobriu o prazer, a aventura, que um livro pode proporcionar. E aí, meu caro leitor, se você um dia tiver acesso a essa obra, sugiro que inicie pelo Sexa (impagável diálogo entre pai e filho), mas salte, em seguida e de imediato, para Fobias, em especial a segunda, que se inicia por esta frase no mínimo inquietante: Não sei como se chamaria o medo de não ter o que ler.
Que é que isso, meu paciente leitor? Não diga nada. Não é preciso. Eu leio no seu rosto a indagação que não quer calar. Por que fiz este depoimento? Qual a razão de toda esta espichada conversa? Na verdade, as minhas pretensões se voltam para, mediante um exemplo de meu mais pleno domínio, porque diz respeito diretamente a mim, às minhas experiências, às minhas vivências, demonstrar quão complexa é a engrenagem que possibilita, estimula e ambienta as relações múltiplas havidas entre o leitor, a leitura e a literatura. Como é possível perceber, tais elementos se aproximam e, num processo essencialmente simbiótico, locupletam-se (no bom sentido, é claro). E você sabe, meu sereno leitor, quem os move em direção a esse pródigo encontro? O livro. Sim, o livro. Objeto palpável. De papel. Impresso. Encadernado. Nada de e-books, de downloads. Nada de notebooks. Mesmo porque, como bem diz o historiador americano Robert Darnton (em O poder das bibliotecas, Folha de S.Paulo de 15.4.2001, Caderno Mais!), (…) o sentido pleno de um livro jamais poderá ser captado pela digitalização de seus conteúdos, pois ele depende em boa dose de elementos como o layout, a capa, a tipografia e o próprio papel.). Tem de ser o velho e tradicional livro. Que permita ser folheado, marcado, cheirado. Invadido, dominado e esquadrinhado. Que, estando o leitor a contemplá-lo, deitado em rede de varandas, se possível na varanda de sua moradia, caso adormeça, vá o livro escanchar-se no seu peito, numa demonstração inequívoca do amor que os une, que os enlaça.
Se você chegou até aqui, amado leitor, só me resta agradecer-lhe.
E confiar-lhe um segredo: a condução de aprendizes pelas sendas do saber, movidas por um estímulo especial, qual seja o de dominar a prazerosa arte de ler e a confortante arte de escrever, consiste no meu mais interessante e intrigante projeto de vida. E esse condutor ou facilitador de processos, tradicionalmente chamado de professor, pede permissão para oferecer-lhe um prêmio, uma verdadeira pérola. Trata-se de excerto da aqui citada obra de Mitch Albom, A última grande lição… Na verdade, é a transcrição desta frase da lavra de Henry Adams: O professor se liga à eternidade; ele nunca sabe onde cessa a sua influência.
¹ Pianistas: flagrante de congressistas votando em nome de colegas ausentes.
[Texto produzido no 1º semestre de 2002, como atividade curricular da disciplina Teoria e Prática de Ensino de Literatura Vernácula, no curso de Letras da UFC e incluído, às págs. 53 a 58, no livro Sessenta – Uma miscelânea textual, com que celebrei a minha passagem para a fase sexagenária.]