Janis – little girl blue: o cinema como medida entre a vida, a memória e a arte

O cinema também é, acima de tudo, a arte de documentar. E as discussões sobre o registro da realidade acompanham o exercício audiovisual desde suas primeiras experiências nos anos 1890. Passado mais de um século, o documentário segue forte como gênero, exatamente por aquilo que ele ativa através das estórias ali desveladas. Esse desvelar artístico é o núcleo que a realizadora Amy Berg tomou como ferramenta para a construção do seu tocante “Janis: Little Girl Blue” (2015).*

Através de uma série de entrevistas cedidas pela própria Janis com amigos e parceiros de trabalho, o longa remonta a história da compositora desde os primeiros anos do colegial até sua prematura morte em 1979, aos 27 anos de idade. A condução da narrativa se deu, sobretudo, a partir de um tom que inevitavelmente carrega um traço melancólico e, em alguma medida, triste.

Mas, se retomamos a história da cantora, dificilmente conseguiríamos não cruzar essas linhas, uma vez que elas estavam intrinsecamente ligadas à carreira de Janis. O Doc tem início com a artista dando depoimento sobre sua música. Em uma narração em off, ela nos apresenta sua arte numa exposição inicial de um filme que, de maneira muito consciente, evita dar ou buscar respostas quanto à linha do tempo que essa personagem criou em vida.

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O documentário mescla a alegria da existência com os instantes de melancolia de uma artista singular em vida e carreira. Aqui, ela posa ao lado do amigo e produtor Clive Davis.

É claro que, por se tratar de um documentário, o filme se ancora em recursos como depoimentos e materiais produzidos pela mídia da época. Entretanto, Amy Berg opta por mesclar esses recursos, que também passam a ser forma e linguagem, com uma pegada mais intimista, que se materializa por meio das várias cartas que Janis enviara a seus pais.

Esses textos, além de garantir uma leveza ao modelo de abordagem “objetivamente temática”, nos aproximam do filme, enquanto público. O que nos permite a importante experiência de apreensão desse “outro” que tanto está relacionado à tradição do documentário ao redor do mundo. Disso, podemos dizer que não estamos diante de uma obra cinematográfica que experimenta em forma e na linguagem, como fizera brilhantemente A J. Schnack em “Kurt Cobain: Retrato de uma Ausência” (2009). Mas inúmeros outros pontos garantem um olhar a ser voltado para Janis: Little Girl Blue.

Um deles, e certamente o mais importante, é o recorte que define o filme. E essa delimitação desemboca também na maneira como o longa foi montado. Em tese, temos uma exata metragem que flutua entre aquilo o que é entrevista, memória e arte. Porque Berg consegue dedicar cada terço de tempo do documentário a cada uma das importantes fases da vida de Janis. Da infância difícil, passando pela descoberta da música, da fama e da constante incógnita que a felicidade ou sua busca foi para essa extraordinária artista.

Aqui, Amy Berg filma David Niehaus, namorado de Janis. Ele fora um amor que não pôde se concretizaer. Janis foi embora antes e o telegrama do então jovem amor não chegou a tempo.

Aqui, Amy Berg filma David Niehaus, namorado de Janis. Ele fora um amor que não pôde se concretizar. Janis foi embora antes e o telegrama do então jovem amor não chegou a tempo.

Retratar uma figura histórica como esta é sempre algo desafiador, devido à saturação de abordagens já feitas pela televisão, fotografia e exposições em geral, além do próprio cinema. Lançar algo novo nesse olhar é o grande desafio, assim como o foi para Amy Berg. Mas seu êxito se torna evidente não apenas pelo componente técnico, uma vez que o filme contrabalanceia bem a inserção da estória com a música – haja vista que o filme também é musical. Mas igualmente pela forma como a obra toca quem a assiste. Quando os créditos sobem, você precisa de um tempo antes de se levantar da poltrona do cinema.

A dimensão que o coloca como propenso “espelho” de uma realidade abordada, num caso como o de “Little Girl Blue”, é fortemente reforçado pelo tom dramático como os eventos se sucederam na vida dessa brilhante cantora. Ela tinha a música como refúgio, mas não conseguiu encontrar o amor, que tanto ela cantou em diversas de suas memoráveis composições. Sim, ela amou muito em vida, mas o amor que iria completá-la certamente em seus sonhos, Janis não teve o tempo de consolidar. E é essa perspectiva que faz deste documentário uma obra tão marcante, comparado apenas pelo inegável brilhantismo dessa artista que foi uma das maiores fomentadoras da música de nossos tempos e dos que ainda virão.

*Janis Little Girl Blue segue em cartaz no Cinema do Dragão – Fundação Joaquim Nabuco. Vale muito a pena conferir.

FICHA TÉCNICA
Título Original: Janis Joplin: Little Girl Blue

Tempo de Duração: 115 minutos

Ano de Lançamento (EUA): 2015

Gênero: Documentário, Biográfico, Musical

Direção: Amy Berg

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.