O concreto é concreto porque é resultado de múltiplas determinações. Consequentemente, o concreto é complexo; não é resultado apenas de uma única dimensão da vida humana seja ela econômica, política, subjetiva ou cultural. O complexo é um conjunto onde o simbolismo, o mito, o imaginário, o racional e a experiência se encontram em seus respectivos lugares para juntos costurarem o tecido daquilo a que chamamos real, como tão bem nos lembra Edgar Morin.
Anos atrás vivenciei uma experiência muito particular a qual resolvo compartilhar aqui neste espaço, quando na disciplina de Sociologia da Educação propus aos estudantes de Pedagogia da UECE fazerem uma pesquisa no território onde habitam, procurando identificar sofrimentos humanos concretos próximos a si, em seus bairros, para pessoalmente escolherem um, com o objetivo de realizarem uma pesquisa mais aprofundada na tentativa de conhecê-los melhor e identificarem algumas possíveis causas que o determinam.
A motivação de fundo para essa iniciativa decorreu de uma ampla reflexão dialógica que fizemos em sala sobre uma pergunta lançada por Theodor Adorno, num trecho em que reflete sobre a educação: “Com quem devemos ser solidários?”. Para Adorno, é com o sofrimento dos homens e mulheres que se deve ser solidário. Por isso é fundamental vivenciar a experiência concreta com o outro, porque a perda da capacidade de experienciar é a insensibilidade perante o próprio sofrimento e perante o outro. A experiência é sempre um agir e um sofrer com o outro de forma real.
Foram muitos os sofrimentos colhidos pelos estudantes nessa ação. Uma verdadeira descoberta para eles, a possibilidade de olharem de forma diferente, conforme registraram em seus relatórios, a partir do momento em que se aproximaram do sofrimento do outro, tão próximo a si.
Relato aqui brevemente a pesquisa de uma aluna realizada com três jovens adolescentes que praticam tráfico de drogas em seu bairro. Entre os seus entrevistados estava uma criança de apenas 12 anos de idade. O garoto entre outras coisas afirmou que tem dificuldade de frequentar a escola na qual está matriculado, porque todas as vezes que chega à sala de aula, a professora o expõe diante dos colegas chamando-o de “fedorento”, mandando-o retornar para casa e só voltar quando estivesse cheirando bem. Assim, ele prefere estar na rua como “avião” porque ganha R$15,00 por dia e com esse dinheiro dá para ele sustentar a sua mãe e seu irmão mais novo.
Quando a estudante apresentou em sala esse relato, começamos então a conversar e a nos perguntar: por que será que uma professora, que passou por uma universidade, recebeu uma formação superior, estudando uma série de teorias sobre o processo educativo, expõe uma criança de 12 anos a tal constrangimento? Seria um problema apenas daquela professora, ou seria um problema da forma como estamos produzindo e transmitindo o conhecimento em nossas universidades? É o sofrimento humano um tema central em nossos estudos universitários? Qual a ética e qual a ideologia que dá sustentação à produção do nosso conhecimento científico?
Como lembra Heidegger, a experiência do pensamento só tem sentido quando se baseia na experiência humana. Só ela permite ter a certeza de que se está baseado na rocha da realidade. Só ela legitima a visão criadora sem a qual nenhuma sociedade pode perdurar. Para isso, é preciso olhar a vida concreta que passa ao nosso redor. E olhar não se trata apenas de ver, pelas lunetas de teorias descoladas da realidade. Olhar significa cuidar, zelar, tomar conta de, quando, por exemplo, dizemos “olhe as crianças”, “cuidado ao atravessarem o sinal”, “vamos brincar?”, “não chore, isso vai passar”, “posso te ajudar?”.
O individualismo moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Produzem-se carros blindados à prova das balas da realidade. O individualismo moderno continua alheando-se da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das consequências que possa causar a outrem. E o pior que é em cima dessa antropologia individualista que construímos o conhecimento no mundo moderno.
A experiência de milhões de “crianças fedorentas” de 12 anos pelo mundo afora, como no Brasil, vem nos mostrar que algo se perdeu, algo continua se perdendo, e que a legião de consumidores e de traficantes de droga não é obra do acaso. A chave do individualismo parece não ser mais capaz de fazer a leitura real da realidade. Precisamos descobrir outra chave que possa abrir a porta do vínculo solidário de nossa convivência humana, derrubando os muros da indiferença e do “apartheid” sociais a que nos submetemos pela mão invisível do individualismo globalizado.
E o Brasil precisa urgentemente recuperar os rumos da sua democracia inclusiva, assaltada pelo Golpe de 2016. As medidas restritivas dos direitos fundamentais e trabalhistas, bem como das políticas afirmativas e inclusivas, perversamente adotadas pela ideologia neoliberal do governo golpista estão nos levando para um cenário de desemprego, insegurança e pauperização de populações inteiras ao mesmo tempo em que incentivam a insensibilidade e a intolerância como norma de convivência social. É preciso reagir a tudo isso e retomar nosso projeto de nação solidária.