A imprensa livre do dinheiro do poder público e das estatais: seria melhor ou pior? – Parte 8 – por Osvaldo Euclides

Num programa ao vivo que iria ao ar em instantes pela maior rede de televisão do país, entrevistador e entrevistado no estúdio, o Ministro da Fazenda do Brasil, então condutor da implantação do Plano Real em 1994, disse ao jornalista, referindo-se a ele próprio e ao Governo Federal: “O que é bom, o governo fatura. O que é ruim, a gente esconde.”

Mais recentemente, semana passada, num debate sobre comunicação, auditório lotado, um assessor de um prefeito disse mais ou menos assim: “Tem muito jornalista chato, fazendo pergunta chata, pedindo informação incômoda. Eles recorrem à Lei de Acesso à Informação. Eu dificulto, demoro, eles cansam e esquecem…”.

Tanto o assessor de comunicação quanto o ministro foram demitidos. Eles disseram uma verdade, mas uma verdade que não pode ser dita na política e na administração pública. Parece que na avaliação geral, ou o povo ou os governos não resistem à verdade.

Desde a redemocratização nos anos 1980, a comunicação tomou uma dimensão estratégica para o gestor público, principalmente prefeitos, governadores e presidentes. Voltaram as eleições, apareceram as pesquisas, a imprensa se insinuava capaz de fiscalizar o poder e o cidadão tinha expectativas de melhoria dos serviços públicos e premiaria ou puniria com o voto os melhores e os piores. O gestor público precisava usar bem a comunicação. O que fez ele, então? Em vez de qualificar a gestão e melhorar a quakidade dos serviços públicos, criou secretarias de comunicação, nelas colocou profissionais bem relacionados com os colegas jornalistas e, por último, mas não menos importante, deu a esses novos secretários a concentração absoluta das gordas verbas para anunciar e azeitar a relação governo-imprensa. Do lado dos governos, foi isso. Do lado da imprensa, as novas verbas encontraram famílias que viravam empresas, empresas que ganhavam escala industrial, que se organizavam, profissionalizavam a gestão e lutavam para se safar da crise e crescer. A fome a vontade. E comunicação pública virou quase sinônimo de dinheiro dos dois lados do balcão.

Desde então, a comunicação vem em primeiro lugar. Numa concepção meio maquiavélica, parecer é melhor do que ser. Noutras palavras, não precisa fazer, basta saber se comunicar. Cargos de confiança e secretarias são preenchidos por quem sabe se comunicar. Se um governo ou prefeitura tem um problema de comunicação, o prefeito ou o governador agirão rápido e firmemente para resolver a questão diretamente, exatamente porque é preciso “faturar o que é bom” e “esconder o que é ruim”. Não há na máquina pública prioridade ou urgência maior. E também porque do alto da poderosa pirâmide administrativa, o chefe (governador, prefeito, presidente) só é atingido de forma imediata e dura pela comunicação. O Parlamento só o incomoda se a Imprensa lhe der repercussão. Na ponta última do processo, controla-se um governo pelo controle de sua identidade e de sua imagem, ou seja, controlando a informação e a opinião.

Não era bem isso, entretanto, o que deveria ter efetivamente acontecido. Com mais democracia, com a abertura e com o avanço da cidadania, esperava-se que imprensa e governos agissem em conformidade com princípios e valores elevados, e não com base em interesses (e preferências) particulares e imediatos.

Pelos princípios e pelas regras constitucionais, a propaganda paga só se justifica como prestação de contas ao cidadão. Até a campanha de vacinação pode prescindir de publicidade paga. Ao escutar a propaganda do poder público no rádio, ao ver um comercial na TV ou um anúncio no jornal, percebe-se, diariamente, continuamente, a utilização do dinheiro público em benefício do gestor de plantão e não do cidadão ou do Estado. Slogans, marcas e vinhetas custam caro tanto para criar quanto para produzir e para veicular. E que sentido há em repeti-las por semanas a fio? Semana passada um ministro do STF mandou um prefeito devolver aos cofres públicos o que foi gasto com a repetição da marca e do slogan da prefeitura.

Quando governador do Ceará, Lucio Alcântara inovou, talvez tenha sido o único. Publicou anualmente um Balanço Geral do Estado, salvo engano com o nome de Balanço Social (possivelmente por inspiração da secretária de Inclusão Social Celeste Cordeiro) com números, dados, atos, fatos e dinheiro, tudo com alto nível de transparência (leia-se prestação de contas), considerados os padrões vigentes. Seu sucessor descontinuou a iniciativa promissora, para dizer o menos. Hoje, doze anos depois, se não tivesse sido interrompido, o Balanço Social poderia estar mais completo, mais didático, mais preciso, e a sociedade civil melhor informada e mais consciente.

Governadores e prefeitos manipulam o dinheiro público, bilhões de reais a cada ano (orçamento anual de um estado como o Ceará é perto de 25 bilhões de reais, o de uma prefeitura como Fortaleza, perto de 6 bilhões). E ainda hoje, quase quatro décadas depois da redemocratização, não costumam prestar contas. Fingem que prestam contas. E não se mostram constrangidos com essa omissão. Fazem cara de paisagem e discursos de transparência, mas seguem sem efetivamente prestar contas de forma clara, didática e acessível. Atendem a exigências legais de maneira formal, como instalar um portal de transparência, nomear corregedores e ouvidores, abrir canais de reclamação, criar sistemas de tira-dúvidas ou telemarketing. De fato, o que fazem é fragmentar a informação, descontextualizá-la, desidratá-la, tornando-a vazia, inútil.

A imprensa e o parlamento submetem-se, silentes, cada um com suas motivações, a essa gigantesca omissão. O cidadão não sabe a quem mais recorrer, quando consegue compreender a questão e quer vê-la tratada, enfrentada, resolvida. Numa terra onde todos reclamam pagar muito imposto, quase ninguém cobra prestação de contas de governadores e prefeitos.

As novas formas de comunicação facilitam a prestação de contas. Tudo é possível de ser feito com alta qualidade, em tempo real e a baixo custo (ou custo zero) com a internet. A imprensa está perdendo esse trem de oportunidade (a prestação de contas) também. Parece que a propaganda oficial vai ficando cada vez mais vazia, sem justificativa consistente, convincente.

Sobra a informação cotidiana de caráter político-administrativo (que não se encaixa bem na verba de propaganda), o que desafia ainda mais as empresas de comunicação mais tradicionais, no que se refere à sua saúde financeira. Um novo nicho poderia ser a qualidade dos serviços públicos, que são (ou deveriam ser e merecer) a primeira obrigação (e maior atenção) da imprensa e do Parlamento. Infelizmente, os dois nunca se prepararam para cumprir este papel fiscalizador, o que é uma pena. Outro espaço seria a análise abrangente e profunda dos problemas estruturais que impedem o desenvolvimento econômico e social, sob a forma de prestação de serviço pela imprensa, como um grande palco, mais do que como propaganda. São focos que foram sempre evitados, embora sejam do interesse da parcela mais ampla da sociedade.

A propaganda com dinheiro público está perdendo sustentação. Os próprios governantes a banalizaram. Se esta leitura estiver correta, pode-se dizer que em breve ocorrerá um debate mais sério sobre a legitimidade (e até sobre a legalidade) dos vultosos orçamentos de comunicação de estatais e do poder público. Atenção sobre as próximas licitações da área.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.