Impérios da comunicação, regulação e golpe – serviço público de qualidade XXVI

A informação é um bem público. A imprensa é um serviço ao público, exige vocação e princípios que historicamente foram dispensados dos empreendimentos de produtos e serviços comuns. A informação não é um bem de mercado, sujeita, por exemplo, à lei da oferta e da procura. A informação tem valor estratégico, a formação da opinião pública é um poder, a imprensa é um poder. A informação condiciona a política e a economia. Democracia, governos e mercados funcionam à base de informação.

O mundo da informação organizou-se de maneira mais nítida nos últimos cem anos, à medida que foram consolidando-se os veículos de comunicação de massa que a tecnologia ofereceu à sociedade. Esse processo deveria ser democrático, nasceu para ser democrático, mas foi desviado de seu caminho natural. Veja como.

O rádio foi uma invenção importantíssima (antes só havia jornais e eram poucos os letrados). O rádio nasceu para democratizar a informação e a formação da opinião pública. A informação chegaria a muito mais pessoas e haveria diversidade entre os editores da informaçã (haveria rádios de diversos sindicatos, igrejas, associações, correntes políticas etc, a tecnologia era simples, o investimento baixo). O tempo passou e o rádio foi se concentrando em poucas mãos, em formatos padrões, em modelos comerciais. A ideia de que o avanço tecnológico permitiria a democratização da informação esvaiu-se.

Depois, veio a televisão e o ciclo se repetiu. Novas esperanças, rápido avanço, depois frustração permanente. A tecnologia oferece a chance da democratização, o veículo ganha mercado, se consolida e, numa repetição pouco percebida, também se concentra em poucas mãos.

Mais uma vez, quase tudo isso ainda na primeira metade do século XX, outro avanço tecnológico, um rádio especial. Promessa de democratização, seguida de concentração. A história se repete numa segunda rodada tecnológica com as rádios de frequência modulada (as FM’s, que apontavam mais qualidade, menor investimento). Mas, uma vez mais, o ciclo acima descrito mostra sua força avassaladora e tudo se concentra em poucas mãos, em poucos modelos e padrões.

Mais recentemente, veio a internet. De novo, o discurso da democratização, de novo a justa expectativa. O discurso inicial é sempre de entusiasmo, uma espécie de abre-alas, o mercado se abre, o negócio cresce, organiza-se e, em seguida, inicia um irreversível caminho de concentração. Estamos vivendo uma etapa já avançada do já tradicional (embora discreto) ciclo, mas já a esperança de democratização se esvai. A concentração na internet é evidente, em poucas empresas, poucos modelos, poucas mãos.

Este ciclo é descrito por Tim Wu, em seu livro “Impérios da Comunicação”. E nele o autor aponta como o poder político-econômico atua e influencia na definição dos atores e dos modelos vitoriosos em cada etapa desse ciclo, vivido duas vezes pelo rádio (primeiro AM, depois FM), pela televisão e pela internet.

Como se vê, o negócio da comunicação já é, em si, concentrado. E isso ocorre desde sempre. Acredite, não é à toa. Nada é mais parecido com uma teoria conspiratória do que a realidade, quando se analisam questões de decisiva relevância em termos de poder.

De volta ao Brasil, observe-se o que aconteceu de mais marcante, no mercado da comunicação, nos últimos quase cem anos. Dois impérios dominaram a cena da informação e da formação da opinião pública. Até o início dos anos 1960, imperava Assis Chateaubriand, com uma rede de rádios e jornais. Depois, logo em seguida, era o velho morrendo e o novo se instalando, nasce outro império, este comandado por Roberto Marinho, uma rede de televisão (apoiada por uma rede de jornais e rádios regionais “afiliados”).

De fato, o país sempre teve e continua tendo uma indústria (ou comércio) da informação com características singulares. Sem fulanizar: dois estados (entre os 26 que compõem o país), Rio de Janeiro e São Paulo, são os únicos a terem veículos de comunicação de massa que se dizem nacionais. Não mais que cinco empresas , pertencentes a cinco famílias, concentram quase toda a audiência em todo o território nacional. Todas elas rezam o mesmo credo, ou seja, têm o mesmo viés cultural e posicionamento ideológico (leitura da política e da economia, visão social).

Nesse contexto, os veículos de comunicação regionais, sem base empresarial suficiente para estruturar-se, noticiam da economia e da política nacional exatamente o que recebem dessas cinco grandes empresas (e suas agências de notícias). São incapazes de construir sua independência. Dependem das grandes redes nacionais para fazer jornalismo, dependem do poder público local para fazer lucro (as economias locais são frágeis).

Consequência: o comércio (ou a indústria) da informação no país é absolutamente concentrado. Geograficamente, empresarialmente, politicamente, economicamente, ideologicamente. Assim, ignorar a realidade e construir “consensos” fica fácil. Na verdade, é quase automático. Quando este poder (de construir consensos) se instala, desaparece a Política (com P maiúsculo), enfraquece a Democracia, corrompe-se a vida pública, podem florescer golpes, os mercados ficam “livres” para desobedecer a lei da oferta e da procura e desrespeitar a racionalidade.

Como só faz sentido que a comunicação seja um negócio privado (o Estado deve ter atuação direta apenas pontual, de referência, pública e não-estatal), o único remédio conhecido aceitável para evitar tal desvirtuamento é a regulação que estabeleça limites ao tamanho, à propriedade cruzada, à amplitude da cobertura geográfica, à concentração, enfim, de maneira a assegurar algum grau razoável de diversidade da opinião, de descentralização da produção, de qualidade das grades e pautas, de respeito à cultura regional, de integridade no trato da informação.

É indispensável e inadiável regular o mercado da informação, com regras administrativas e econômicas que imponham limites à concentração. O problema é o mesmo da assembleia de ratos: quem vai por o guizo no gato? Quem consegue enfrentar e vencer a força da informação e da opinião tão poderosa e articulada que faz vencer o fraco argumento de que “regulação é censura”, um “ataque à liberdade de imprensa”?

Um partido que se diz popular e de esquerda esteve 13 anos no poder e nada fez. Ensaiou, discursou, prometeu, anunciou…mas recuou, negociou ou acovardou-se.

A maior, mais desenvolvida e mais competente democracia do planeta, os Estados Unidos da América, faz tempo, muito tempo, estabeleceu limites à concentração de poder nesse estratégico serviço de interesse público. E essa é uma das razões fundamentais de terem conseguido construir uma democracia estável, há duzentos e cinquenta anos sem golpes.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.