“No século XX, o mundo foi planejado para as indústrias, não para as pessoas. As cidades foram construídas para dar espaço para o maior número possível de carros – e, como resultado, o espaço público nunca foi tão sujo, barulhento e perigoso. O modelo de produção e de ocupação passou a consumir recursos naturais e gerar resíduos num ritmo alucinante – o que levou o mundo a um colapso ambiental e está fazendo o clima mudar.
A proibição ultrarradical da canábis é típica do século XX – uma relíquia de um modo antigo de pensar, da qual ainda não conseguimos nos livrar. No entanto, cada dia que passa, o absurdo dessa política se revela mais […] Ela (canábis) causa menos danos mentais e menos dependência que os remédios psicoativos da indústria farmacêutica – antidepressivos, ansiolíticos, soníferos, anestésicos. Gera menos morte e violência que as bebidas alcoólicas industrializadas.
A indústria de bebidas alcoólicas é imensamente poderosa no mundo todo. No Brasil, os grandes fabricantes de cerveja estão entre os maiores investidores em publicidade e, portanto, têm imensa influência sobre a mídia (segundo o Ibope, a Ambev é a quarta maior anunciante do país, à frente do Bradesco, da Volkswagen e da Vivo). Eles estão investindo bilhões na Copa do Mundo de 2014, uma ótima estratégia para associar o álcool à saúde e à diversão e fisgar usuários jovens. Isso, em longo prazo, terá impacto brutal no número de mortes no trânsito, agressões e doenças crônicas. A indústria do álcool tem também muito poder sobre a classe política, já que muitos políticos são donos de empresas de mídia locais e têm interesses fortes em eventos como a Copa do Mundo.
As pessoas são diferentes umas das outras. Para umas, maconha é absolutamente inofensiva, um passatempo que pode facilmente ser mantido sob controle e conciliado com uma vida criativa, produtiva e feliz; para outras, não. Algumas têm surtos psicóticos gravíssimos depois de fumar e podem sofrer danos irremovíveis em seu desenvolvimento. Outras tantas têm dificuldade para manter o hábito sob controle e acabam prejudicando sua carreira e sua vida. Para certas pessoas, maconha é uma bênção, um remédio, um alívio – é a diferença entre ficar cego e enxergar, entre sofrer com espasmos doloridos o dia todo e ter um minuto de paz, entre a vida e a morte. Essas diferenças existirão sempre.
Um bom sistema é aquele que compreende essas diferenças e permite que essas pessoas vivam em paz umas com as outras. Um bom sistema é aquele que cria incentivos e regras que diminuam os danos e que aumentem os benefícios. Nesse aspecto, o que temos hoje no Brasil é astronomicamente pior que qualquer coisa que eu vi na Holanda, na Califórnia, na Espanha, em Portugal ou mesmo no Marrocos. Nosso sistema estimula os piores usos, remunera os piores instintos, reduz qualidade, gera corrupção e violência. Um bom sistema é aquele que é o melhor possível para o maior número de pessoas possível. Estamos muito longe disso.”
(Trechos do livro O fim da guerra de Dennis Russo Burgierman; Tainã Bispo, 2011).