“Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.” [Carlos Drummond de Andrade, em No meio do caminho].
Entre ela – o meu objeto de desejo – e mim, uma enorme e infensa pedra havia.
E sobre nós chovia. Uma chuva fina, persistente e fria, que não causava os estragos de um aguaceiro, de um toró, mas impunha ao sol um recolhimento de dar dó, já lá se vão alguns dias, entre fronhas e cobertores de nuvens às vezes plúmbeas, às vezes pardacentas, provocando-lhe um extenuante quase-sumiço; e à lua, um desempenho anêmico, com o emolduramento de contornos circulares e tons avermelhados que, à medida que se alargavam, esmaeciam, um olhar introvertido e choramingueiro a revelar submissão à natural e sobeja pluviosidade que eternizar-se certamente pretendia, e as estrelas, em desencanto aflitivo e irritadiço, já nem bem tremeluziam; e à terra, o umedecimento à exaustão, o que a infligia uma regurgitação lamacenta, brejenta, escorregadia.
E a pedra enorme e inerme – nem cabralina, nem drummondiana – que, carrancuda, contra mim se insurgia, pelo revestimento à mostra, antes grisalho, ora com filetes de tons esverdeados, ante o agir impiedoso da chuva fina e fria que caía e sobre ela também escoava e se esvaía, aparentava que tão-somente dormitava, indômita e preguiçosa, e o resto do bloco rochoso se escondia, em sua recôndita maioria, nas entranhas da ora úmida terra, onde um quedo “stoneberg” mais se projetava.
Entre ela – o meu objeto de desejo – e mim, um amor irresistível, incontestável e indestrutível – embora platônico – no cotidiano se nutria. Nenhum obstáculo existia capaz de impedir-me o usufruto da magia com que ela – a bola! – tanto me aprazia.
Cruzei a face áspera, macambúzia e sorumbática do calcário, com destreza, rapidez e maestria, sem perceber um amontoado de restos de material de construção que em seu contorno jazia. E eu, venturoso, a amada junto ao peito esquerdo, onde um romântico coração naturalmente pulsava, recolhi-a.
Ao retornar à castigada arena, sob a pressão dos inflexíveis parceiros, moleques cujos corpos seminus e friorentos já tremiam, movi-me tão lépido quão fagueiro; logo, escorreguei, desequilibrei-me, caí. Dor lancinante. Lágrimas cálidas e pingos de chuva álgidos se misturaram e, juntos, defluíram pela face cujos músculos se contorciam. Uma lasca de azulejo branco perfurara a almofada do antepé, entre a região plantar e o dedão do pé, ali se alojando, ao abrigo de uma minúscula coberta de músculo e couro, entre dois lanhos paralelos, dos quais filetes de sangue afloravam e frouxamente escorriam.
Intrépido, embora choroso, sentei-me na enorme pedra, cruzei as pernas, a direita sobre a esquerda, e, num puxão único e corajoso, desalojei da planta do meu pé o fragmento cerâmico que tanto me incomodava. Com ele, dois jorros de sangue espirraram e me apavoraram, enquanto seiva – arterial ou venosa – e água de chuva disputavam espaço entre as ranhuras e fendas do monólito.
Então, acudiram-me pessoas entendidas na arte de propor procedimentos de primeiros socorros. E aplicaram na área afetada, enquanto eu apenas soluçava e gemia, gemia e soluçava, a proposta de maior acolhimento entre elas: para aplacar o sangramento, um santo remédio havia – pó de café, reza e muita fé… e pronto recolhimento. E com uma tira de pano limpo recobriram o ferimento. Ágil e eficiente atendimento, cuja pouca eficácia logo revelaria.
Sangramento estancado, a dor, porém, a incomodar-me teimosamente prosseguia. Logo, o calor do corpo um quadro febril denunciaria. O anjo da guarda, na forma de um gentil homem, levou-me, em ambulância do Samdu, à emergência do hospital, no outro lado da freguesia. Acolhimento generoso. Assepsia. Anestesia. Pequena cirurgia. Prescrição médica: tratamento intensivo com antibióticos e rigoroso acompanhamento de quem de enfermagem entendia.
E, mais uma vez, o meu anjo da guarda não falhou. Incorporou-se numa bela e prestativa mulher – irmã do gentil homem; jovem, mal abandonara a adolescência; alta, na exata medida, nada de exageros; cabelos castanhos, ondulados e longos, que, soltos, se esparramavam pelas costas largas e desciam até a cintura bem delineada; olhos de um verde de esmeralda, que, não raras vezes, pareciam cintilar; um todo facial – nariz, lábios e boca, queixo – bem peculiar, revelando um tipo de beleza único; muitos sorrisos de encantamento e poucas carrancas de acatamento; sempre gentil, meiga, cordata. E ela cuidou de mim, como de um filho certamente cuidaria. E eu, carente de atenções maternais, como “mãedrasta” gratamente acolhi-a. Até as dores mais intensas, mais profusas, aprendi a suportá-las, sem queixumes, sem lamúrias. E eu a elegi como minha eterna enfermeira.
Um dia, com voz quase sussurrante, melódica, cativante, ela testou meus sentimentos:
– Garoto, muitas são as histórias em que enfermeira e paciente se apaixonam. Cuidado, eu posso me apaixonar por você!
Eu apenas sorri. E o meu pobre sorriso revelou todo o meu desmerecimento. Ser tratado como filho já ia bem além dos meus méritos. Nem ciúme me foi dado sentir; na minha inocência de quase-adolescente, não compreendia por que ninguém a cortejava. Bela Julieta, por onde anda o teu destemido Romeu? Oh, Cupido! Oh, Vênus! Oh, céus! Oh, Deus!
Era um sábado à tarde. Ela iria participar de um evento social noturno. Preparou-me para o banho diário, fez-me, como sempre, deitar na rede de varandas e procedeu à troca do curativo, com a mesma competência. Adormeci. Mesmo assim, percebi, através da penumbra do quase-sono, a silhueta de minha cuidadora, pés descalços, pernas a descoberto, braços nus, cabelos soltos e quase esvoaçantes ante sopros de vento que pelo corredor o ambiente atingiam, ela, divina, cândida, escultural, com o esbelto corpo protegido por uma felpuda e branca toalha de banho que a envolvia, que só o essencial encobria, a procurar nervosamente algo que em um canto qualquer esquecera. Um movimento mais brusco, o nó lasso desfez-se, a toalha desprendeu-se e rapidamente até o chão desceu, debalde a tentativa dela para evitar tal desfecho. Agilmente recompôs-se, o olhar de constrangimento e censura dirigido a mim que, agora de olhos cerrados, dormir fingia.
Assim que pôde, ela me interpelou:
– Garoto, exijo que me diga a verdade. No sábado à tarde, o que é que você viu?
– Eu?! A que horas?
– Não se faça de desentendido! O que você viu quando eu estive aqui só de toalha, hein?!
– E você esteve aqui depois que saiu…? E só de toalha?
– Esses seus olhinhos inocentes não me enganam, garoto. Eles me viram, não foi?
– Não! Eu juro que não. Até porque estava dormindo.
– Ah! Está bem. Eu vou acreditar pra não perder o amigo.
A partir dessa inquisição, todas as vezes que circunstancialmente trocávamos olhares, o verde de esmeralda dos olhos dela penetrava incisivamente no castanho escuro dos meus, como se pretendesse sugar-me a verdade que tão bravamente eu mantinha, para o bem da nossa amizade, sob pétreo sigilo.
E ela parecia querer impingir-me uma qualificação que, a rigor, eu me fazia merecedor:
– Mentiroso!
Agora, passado mais de meio século, confesso:
– Eu vira!
“Outra educação pela pedra: no Sertão / (de dentro para fora, e pré-didática). / No Sertão a pedra não sabe lecionar, / E se lecionasse, não ensinaria nada; / Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, / Uma pedra de nascença, entranha a alma.” [João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra].