“Em que condições alguém precisa viver até se aposentar?” por Gilson Reis

ELA começou a dar aulas cedo, mal tendo terminado o então “curso normal”, como ainda se chamava o magistério de nível médio. Isso significa dizer que aos 18 anos ELA já lecionava para as primeiras séries do ensino fundamental, enquanto conciliava o trabalho com a faculdade de Educação.

Pela regra, quando começou a trabalhar, ELA poderia se aposentar quando chegasse aos 43 anos, depois de 25 anos de contribuição à Previdência e de atuação em sala de aula, alfabetizando dezenas de crianças por ano. Um quarto de século de trabalho ininterrupto, tempo considerável para uma profissão que exige estudo e formação constante, que exige dedicação mesmo fora da escolas pelo acúmulo de atividades extraclasse — entre preparações de planejamentos, provas e correções —, que exige jornadas duplas — obrigando a lecionar em mais de uma escola, devido à baixa remuneração — ou até triplas, numa sociedade machista na qual a mulher ainda é vista como grande responsável pelos cuidados com a casa, com os filhos e, quiçá, com o marido ou os pais.

No entanto, veio, nos idos dos anos 1990, um presidente que afirmou que quem se aposentava com menos de 50 anos era vagabundo — mesmo tendo ele feito isso aos 37 — e criou o tal fator previdenciário, que incidiria sobre o futuro benefício d’ELA, mesmo que mantida a redução de cinco anos do tempo de contribuição em relação às outras categorias. Com isso, ainda que esperasse até os 50 anos para se aposentar e não ser considerada uma “vagabunda” pelos parâmetros do sociólogo-presidente, ELA sequer teria direito ao salário de benefício integral.

Anos se passaram e agora, no fim da segunda década do século XXI, vem outro presidente — ilegítimo —, com outra versão da política neoliberal  — que fora derrotada nas urnas — e outro golpe, entre tantos, nos direitos previdenciários. Com ele, o recado: professoras na situação d’ELA só poderão se aposentar de fato quando completarem 60 anos, implicando 17 anos de trabalho a mais do que o que tinham direito inicialmente.

ELA não é um simples pronome pessoal, mas uma sentença. ELA pode ser sua mãe, sua irmã, sua amiga, a professora que ensina ou ensinou as primeiras letras ou os primeiros números ao seu filho… ELA pode ser você. Nestas três letras e duas sílabas está uma síntese do impacto nefasto da pretendida reforma da Previdência do governo Michel Temer, endossada por seus aliados no Congresso Nacional, sobre os professores da educação básica, sobretudo as professoras, que são maioria na educação infantil e na primeira etapa do ensino fundamental, séries em que essas trabalhadoras começam a atividade docente mais jovens.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287/2016, que já recebeu três outros remendos no Congresso, determina que o benefício previdenciário só seja concedido à trabalhadora celetista que comprovar 62 anos de idade e 15 anos de contribuição e ao trabalhador que tiver 65 anos de idade e 15 de contribuição. Mesmo assim, a renda será de 60% do salário de benefício, que é média das contribuições efetuadas à Previdência Social.

No caso do magistério, que hoje ainda conta, como já mencionado, com a prerrogativa da redução de cinco anos de contribuição — em função do alto grau de exaustão da atividade docente —, a regra proposta pela última versão da PEC para os professores e professoras do ensino privado (que, juntamente com os técnicos administrativos dessas instituições, formam a base da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee) difere pouco. Se a reforma da Previdência for aprovada, tanto professor quanto professora da iniciativa privada terão de comprovar, respectivamente, 60 anos de idade e 15 anos de contribuição — e, como nas demais categorias, sem receber o salário de benefício integral. Para recebê-lo, o tempo de docência e de contribuição terá que ser de 40 anos. E isso sem falar que a idade mínima, pela PEC, tenderá a aumentar com o crescimento da expectativa de vida no país.

A Contee tem feito uma mobilização intensa de combate à reforma da Previdência, assim como lançou uma campanha internacional contra a desprofissionalização do magistério. As duas questões estão interligadas. A PEC 287, que acaba com a aposentadoria diferenciada dos docentes com redução do tempo de contribuição, agrava-se ainda mais à luz das leis 13.429/17 — que, ao escancarar a terceirização até para as atividades-fim de uma empresa, permite que os próprios professores sejam terceirizados (acirrando uma luta que a Confederação já tinha contra a terceirização dos técnicos administrativos) — e 13.467/17, da reforma trabalhista. Com a precarização do trabalho docente e a possibilidade nociva de contratos temporários e intermitentes, quanto e em que condições alguém como ELA precisaria trabalhar até reconquistar o direito de se aposentar?

Resistir à reforma da Previdência é urgente e preciso. Em defesa de todos os trabalhadores e trabalhadoras, de todas as categorias, e, na nossa base, em defesa das ELAS e ELES que lutam pela educação.

Gilson Reis é coordenador-geral da Confederação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e vereador pelo PCdoB) no município de Belo Horizonte

Texto originalmente publicado em Carta Educação, da revista Carta capital.

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