“Democratura”, as ditaduras camufladas ou a fascinação imbecil dos homens pelo poder, por Paulo Elpídio de Menezes Neto

“Je pense que les peuples démocratiques ont un goût naturel pour la liberté; livrés à eux-mêmes, ils la cherchent, ils l’aiment, e ils ne voient qu’avec douleur qu’on les en écarte. Mais ils ont pour l’égalité une passion ardente, insatiable, éternelle, invincible; ils veulent l’égalité dans la liberté, et, s’ils ne peuvent l’obtenir, ils la veulent encore dans l’esclavage. Ils souffriront la pauvreté, l’asservissement, la barbarie, mais ils ne souffriront pas l’aristocratie”. Tocqueville, “De la Démocratie en Amérique”, II.I. III., Pléiade, Gallimard, Paris,1991.

Ian McEvan (“A Balada de Adam Henry”) considera a utopia uma das noções mais destrutivas da história do pensamento humano. A ideia de que é possível formar uma sociedade perfeita, nesta vida ou em outra posterior, traz em si a ameaça de que a perfeição e um certo ideal de justiça e equidade, fora outros atributos de fé, justificariam tudo o que fosse feito para alcançá-la. Afinal, a ideia de redenção, crença milenar, sempre exige inimigos a combater – e aniquilar. Foi assim com o Império romano e seus Césares, deu-se na invasão dos bárbaros, marcou a consolidação do domínio da fé católica na Espanha e em outros países, pelo fogo obsequioso da Inquisição; esteve presente na conquista do Novo Mundo e nas desventuras da colonização do continente africano. Fez-se, com o passar do tempo, de utopia distopia, aparato do poder e da força, mecanismo da ordem e dos controles exercitados pelo Estado, mediante os aparelhos de seu domínio. Animou o carisma dos bolcheviques, legitimou a revolução popular de Lenine, Stalin e Trotsky; encheu a Italia de patriotismo, com a “Marcia su Roma”, de Mussolini, armou os punhais da “Noite de Cristais”, em Munique, e as ideias descozidas de um pintor desempregado; fez os gaúchos apearem na avenida Central do Rio de Janeiro; e, anos depois, as famílias “com Deus, pela liberdade” acolherem, das janelas da zona sul, a redenção da pátria sob risco anunciado.

Amigo-inimigo”, ‘bem-mal”, “bonito-feio”

Esses capítulos da trágica história das utopias podiam ser reduzidos à distinção entre ações e motivações políticas entre “amigo e inimigo”, na justa medida da anteposição do “bem ao mal” e do “bonito ao feio”. Outra forma de perceber as raízes totalitárias que surgem em países acima de qualquer suspeita encontra na noção de “nação-estado” o risco de que a “nação” pretenda tornar-se grupo exclusivo e contraponha sua vontade e suas ações à lei e às instituições do Estado. No primeiro caso, temos a visão de Carl Schmitt (“The Concept of Political”, 1927). No Segundo, a de Hannah Arendt (“The Origins of Totalitarism”, 1951). Esse desvio pretensioso pela intimidade do pensamento de dois mestres antípodas não pôde ser evitado; provoquei-o, até, no intuito de forçar a reflexão em torno de questões políticas secundárias que nos impedem de enxergar o essencial dos contrapontos, divididos que estamos entre o “nós e os outros” e a “sociedade e o Estado”.

A ruptura da ordem democrática e o advento dos Estados autoritários não são fenômenos raros, desde aqueles dias longínquos quando se armou a Primeira Guerra. Mesmo antes do advento da democracia, como regime politico, construção delicada das ambições filosóficas do Ocidente, ou do que essa palavra possa, hoje, significar, com as suas serenas virtudes e abjetos pecados, a força militar ou o domínio eminente do Príncipe impuseram-se como controle social e politico, muitas vezes aceitos pelas sociedades, capitalistas ou socialistas, ou pelo povo, conceito fugidio e impreciso da práxis política dos homens.

Golpe”, “contra-golpe” o Macondo político da América Latina

A América Latina é um laboratório dotado de enorme criatividade na manipulação de fórmulas das novas “democraturas”, segundo expressão cunhada pelo sociólogo suiço Max Liniger-Goumaz (“La démocrature: Dictature camouflé, démocratie truquée”, 1992). Mas não detém o monopólio dessa composição bem sucedida, hoje caída em domínio público. Guarda, entretanto, alguns récordes memoráveis. Ditaduras longevas, Macondos construídos pelo medo e pela ignorância, alianças espúrias nascidas da partilha dos bens do Estado e da contravenção, conluio entre elites endinheiradas e lideranças “revolucionárias”, íntima associação de atores públicos e empreendedores privados, convergência de interesses entre corporações de negócios e agregados sindicais.

Em sua versão moderna, autocracias e governos autoritários perduram amparados pelo salvo-conduto de um republicanismo democrático suspeito, protegido pelo batismo de bandeiras autóctones, que recordam lances libertários de um passado distante, cuja história se perde na noite de alianças espúrias. Nessas encostas andinas, mais do que em outras partes do mundo, a ignorância leva os homens a renunciar à liberdade. E os leva a submeterem-se à autoridade superior do Estado, submissão que os faz sentirem-se protegidos: a submissão é mais fácil de enfrentar do que a liberdade.

Nesse cenário feliniano, no qual o “non-sense” ganha cores de realidade e reproduz a tibieza de relações sociais ambíguas, “ditadura” e “democracia” perderam seu significado conceptual de origem. Palavras e significados foram engolidos pela voracidade de uma insuspeitada revolução semântica: e dela resultou a fragilização das formas de entendimento mais elementares, no plano da ciência política e do direito constitucional. A expressão “golpe” e o atributo “golpista” dado aos que supostamente praticam o golpe é uma extensão da ruptura da ordem legal ou da quebra da legitimidade, a partir do ângulo de observação de quem observa, julga e condena ou absolve.

Seria impossível analisar, sequer referir em notas de simples registro, os golpes de Estado retidos nesta conspícua “Contabilidade” das ditaduras latinoamericanas nos dois últimos séculos. Tão numerosas e tão pontuais foram elas, e tão frequentes, que se tornaria inútil qualquer tentativa de as classificar e caracterizar, a partir de critérios correntes de “quebra da ordem constitucional e democrática”.

Impeachment”: golpe parlamentar (a síndrome de Cromwell), golpe disfarçado ou remédio constitucional

Por essa razão, mais avisados andaríamos se limitássemos o horizonte de análise às últimas duas décadas, precisamente quando ocorre o primeiro afastamento de presidente da República por “impeachment”. Dá-se em 1993, na Venezuela, com o presidente Carlos Andrés Perez, vítima de duas tentativas frustradas de golpe. Substitui-o o coronel Hugo Chávez, presidente por 14 anos, no exercício de mandatos sucessivos, interrompidos por pela morte indesejável dos que se apegam ao poder.

Fernando Collor de Mello, no Brasil, afastado em 1992, por “impeachment”, mediante aliança partidária convergente e de grupos da esquerda, e de formações sindicais militantes.

Renato de Manuel Zelaya, Honduras, eleito em 2005, afastado em 2009, pelo Congresso, com base em acusação de desacato à Suprema Corte e ao Tribunal Supremo Eleitoral, em decorrência de recusa de realização pretendida por Zelaya de “Convocatória” para fins da realização de Referendum para a constituição de uma Assembleia Constituinte com vistas à reforma constitucional, necessária para a correção de impedimentos à realização de eleiçnoes para aprovaçnao do terceiro mandato de Zelaya..

Fernando Lugo, eleito em 2008 e afastado por “impeachment”, em 2012, acusado de mau desempenho de suas funções, em decorrência de conflito agrário em Curugualy, do qual resultou a morte de 17 paraguaios.

E, por fim, Dilma Rousseff cujo processo de “impeachment” foi submetido ao Senado Federal, para apreciação de denúncias de procedimentos administrativos e contábeis ilegais, omitidas formalmente acusações que não se caracterizassem “crimes” contra o Estado.

Em todos os processos mencionados, aprofundaram-se as controvérsias quando ao móvel legítimo da providência legal e constitucional proposta. De instrumento constitucional legítimo, consagrado em muitos países de reconhecidas tradições democráticas e respeitável lastro constitucional, o instituto do “impeachment” transformou-se, segundo as fortes ondas de um nova revolução semântica, em “golpe” ou “contra-golpe”, ruptura democrática ou intervenção preventiva. Perdura entre juristas e observadores exigentes a síndrome de Cromwell, a persistência da memória histórica do golpe parlamentar de Lord Cromwell, entrevisto em todas as ações que, nesta vasta latinidade de vizinhança, pretenderam interromper mandatos presidenciais.

A fascinação imbecil dos homens (e das mulheres) pelo poder

Dostoievski (“Irmãos Karamazov”, 1881) mostra como os homens não se aplicam com o mesmo empenho na busca da liberdade quanto da garantia da sua segurança. Preferem por astúcia delegar sua capacidade de agir a terceiros atores que decidirão por eles e por eles assumirão a responsabilidade por decisões que seriam de sua própria conta. Etienne de la Boétie (“Le Discours de la servitude volontaire”, 1549) denuncia a “fascinação imbecil” dos homens pelo poder. Mesmo quando não são constrangidos, os homens adoram os seus “senhores”, essas figuras poderosas que “não são grandes senão porque estamos ajoelhados”. E, por fim, Tocqueville para quem a democracia não era uma forma de governo, mas um estado social caracterizado pela “igualdade de condições”: “É difícil de conceber como os homens, tendo renunciado à capacidade de tomar suas próprias decisões, possam escolher quem os devam conduzir”. Improvável supor, nessas condições, que um governo enérgico e sábio possa sair do sufrágio com a participação de um povo ao qual faltaram educação e os atributos essenciais da cidadania que dela derivam: a consciência política que transforma os súditos e eleitores em cidadãos, donos de seus próprios destinos.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.