Data venia, permito-me a invocação vaidosa, banhada na retórica forense para mergulhar em conjecturas ambiciosas (pretensiosas, dirão os mais críticos). Em braçadas de escafandrista, fisguei dois vocábulos postos em merecido sossego.
Começo por “ordália”, assemelhada, na Bíblia, a “águas da amargura” ou “juízo divino”. Essa prática foi muito usada nos julgamentos de infidelidade, nos quais os juízes não interferiam, cumpria-se a vontade de Deus. A mulher adúltera recebia, com sincera isenção judicante, a penalidade merecida: suspeitada de adultério, a pecadora deveria beber de água contaminada; culpada, morreria, com o ventre inchado e a coxa consumida; se inocente, sobreviveria e teria filhos.
O segundo vocábulo, “demo”, de origem distante e imprecisa, vem a ser variante de designações perdidas com o correr dos tempos como registro de “povo”.
Do grego, Demos, (habitantes do território), laos (populaça); do latim populus e plebs (plebe) e o seu contrário patricii (patriciado), vulgus, multitude, turba, pubes, foule…Paremos por aqui.
Datam da antiguidade grega alguns conceitos léxicos e sociais que distinguem o povo, entidade vaga, por vezes em oposição aos governantes, outras como entidade soberana. Os escritores dessa idade remota pouco tinham de sociólogos ou politicólogos; deixavam-se guiar pelos caprichos estilísticos na escrita, assim o exigiam as leis da retórica. No mais das vezes, empregavam um termo pelo outro, sem qualquer preocupação com o seu significado ou coerência, que não fosse a elegância do texto.
Reconhecemos “democracia” como paradigma de certezas e virtudes e brandimo-lo contra tudo que a pudesse desvirtuar ou comprometer.
A Democracia mordida pelo neopopulismo
Sobressaem entretanto, nessa semântica de conceitos, valores e pressupostos excludentes, segundo a métrica de nossa visão, uma espécie de “água da amargura”, quem não acreditasse em suas peregrinas virtudes morreria, contaminado pelas impurezas da negação. Os modelos e variantes da democracia se sucederam, e já não coincidem, tampouco se ajustam aos ideais que a inspiraram.
O “neopopulismo” de esquerda ou de direita apoderou-se, dissimuladamente, dos governos latinoamericanos e de velhas nações europeias, de cara nova, e promessas sedutoras. O “neopopulismo” representa manifestações contestatárias, dominadas por bandeiras ilusórias, empunhadas por chefes carismáticos.
Os novos “condottieres”, os “caudillos” repaginados, reproduzem-se à sombra da incultura política e da esperteza de lideranças redentoras, e exacerbam paixões identitárias: protecionismo, nacionalismo, intervencionismo e autoritarismo. Esses profetas da Revelação reproduziram-se, nos últimos tempos, diante da inércia fatalista das massas crédulas. A confiança brota, assim, do povo convencido pelas pressões de “marketing politico, da “ordália” dos desígnios do poder e de uma cultura “pós-factual”, ideologizada, que tudo contamina.
O “neopopulismo” reflete lenta e indistinta transmutação dos ideais da sociedade dominada pela tentação autoritária, recoberta pelo manto das virtudes de políticas públicas duvidosas (o “laos” contra o “demos”). Desses apelos salvacionistas compartilham incestuosamente a direita da esquerda e a esquerda da direita, numa convergência sinuosa que só encontram explicação na negação dos princípios fundamentais da democracia, banalizados por versões desviantes dos modelos e procedimentos republicanos.
As “democraturas” e o populismo autoritário
Os governos que se instalaram abaixo do Rio Grande, para usar velha e discrinatória expressão marcada pelo Império do Norte, têm muito em comum: economias combalidas, levadas à ruína por políticas equivocadas e corrompidas; a inépcia dos seus governantes, amparados por velhas muletas ideológicas de há muito abandonadas pelos países da Europa Central (nos quais a experiênca não durou mais de setenta anos, o que, afinal, não foi pouco); a modelagem de um “bolivarianismo” de ocasião, inspirado em bandeiras de libertação nos tempos da conquista espanholas, concebida no ventre da ignorância das lições da História nesse pedaço do Planeta; e a busca desesperada de um “inimigo externo” para justificar o seu próprio fracasso.
O termo “democratura” aplica-se com propriedade a essas fórmulas improvisadas de governo. A roupagem grosseira, porém convincente, recobre frágeis instrumentos democráticos e republicanos com os aparelhos eficientes do autoritarismo. A “democratura” ignora a questão de gênero e de rotulagem política e ideológica. É usada indistintamente pela esquerda, quanto pela direita. Em nome de uma suposta democracia “direta”, popular, de uma democracia “democrática”, em nome da inclusão “pró-ativa”. Ou, como parece aos saudosistas, como Trump, pode ser bandeira de recuperação de grandezas perdidas, de um passado quando todos eram muito felizes.
As ameaças que pesam sobre a democracia, por estes lados dos Andes, na Europa, no Oriente Médio e na Ásia, e por outras paragens geopoliticamente menos relevantes exibem, em muitos casos, a persistência de velhos rancores religiosos e de ideologias perdidas em suas certezas “filosóficas” ainda que estrategicamente possam server aos ideais pragmáticos do seu poder militar. Não parece ser o nosso caso: a religiosidade brasileira é pragmática. Deus, negócios a parte…
Trump, a visão neocapitalista do populismo mundial
Trump não é exceção. Certamente, as suas influências confessionais não refletem os pruridos dos “pilgreems” de outrora, tampouco a disciplina dos evengelizadores da ocupação heróica do Velho Oeste, muito menos as suas inclinações políticas que se as tem passaram despercebidas pelos observadores mais atentos. Este novo-cruzado é um homem forjado pelo desafio das coisas práticas. Sua experiência vem de um ramo de atividade econômica altamente permeável a aproximações perigosas com o Estado e os governos. A atividade imobiliária tem “afinidades” endogâmicas com os governos, aqui, lá e acolá, pela natureza do empreendimento em si. Pelos interesses públicos e privados que envolvem obras e transações, sobretudo em economias capitalistas. Aqui no Brasil, A Operação Lava a Jato e muitas outras que a ela se conjugam por circunstâncias e humanos desvios, demonstraram como é frequente e comum essa convergência de interesses.
Trump é um gestor motivado pela velocidade dos negócios e de seus ganhos. Começou como poucos se iniciam, com o apoio paterno, imigrante bem sucedido que veio da Alemanha, como muitos compatriotas, para “fazer” a América – e naturalmente fazer fortuna. Empresário de ambiciosos lances no Mercado, combativo e frio, conquistou lugar de projeção no “milieu”. Olhou, sempre, para o Estado como quem vê um osbtáculo, por suas instituições e leis, aos negócios do setor: a burocracia pareceu-lhe, segundo seus anseios, impedimento à eficiência e procurou encontrar os meios de contornar os seus impedimentos mais notórios. Não seria indesejável esses traços de modernidade, caso não atendessem objetivos e propósitos imediatos e personalíssimos.
Daí ao “trumpismo” não custou muito. Valeu-se da crise que comprometeu parte significativa da economia americana, usou o desemprego que ela trouxe; apoderou-se da insatisfação da classe média americana e de setores conservadores das classes ricas; improvisou estratégias de política internacional e diplomática, fez-se povão, metido, por capricho, em seus mal-talhados ternos Yves-Saint Laurent – e cunhou o neopopulismo americano. Ajudado pela incompetência dos democratas, encravados no “status quo” do “establishment” dsetruiu o senso comum e impôs sua receita de tornar “A América novamente grande”. No fundo pouco inovou: Hitler, Mussolini, Lenine, Stalin, conceberam, em passado não muito remoto, essa estratégia para o assédio e conquista das massas insatisfeitas. Tivemos os nossos “salvadores” por cá: Getúlio, Collor, Lula e Dilma. E estamos no aguardo inquieto dos próximos que seguirão a anunciação de Trump.
Trump recorreu com êxito a uma fórmula já descrita por Maquiavel, cunhada recentemente por “post-truth” ou “post-fact”, “pós-verdade”, “pós-fato” que a tantos parece coisa nova… A de recorrer à crença e rejeitar o fato; contraditar a realidade com a esperança e o otimismo; falar sempre do futuro e como ele poderá ser grandioso e seguro. Apelar para o orgulho ferido dos patriotas. Enaltecer o civismo e recorrer a crenças de fé que, como referia Max Weber, exaltava as virtudes do homem bem sucedido e condenava a inépcia dos fracassados.
O risco que Trump infunde é a sedução de suas palavras, vazias de sentido e de lógica, e o fascício que elas exercem sobre pessoas crédulas e simples que tudo arriscam em um jogo de cartas que não conhecem bem. O Candido voltaireano encarna bem a ingenuidade otimista da aceitação de novas utopias. Há uma tendência humana, excessivamente humana, que nos domina, à qual nos apegamos como tábua de salvação — a de acreditarmos que a sorte sempre nos salvará, basta que não nos preocupemos como se dará essa angustiada salvação…
As ameaças que rondam a Democracia e os antídotos de que não dispomos em nossa farmacopéia
Tudo são ameaças no horizonte. E mais graves ainda são as prenunciadas do que as conhecidas até agora.
Os partidos perderam significado próprio, transformaram-se em uma máquina politico-burocrática de apontar e eleger candidatos: tornaram-se, no Brasil, convenhamos, a pia-bastismal da vocação de governantes e representantes mandatários de uma fragilizada democracia, muito pouco republicana, admitamos, ainda que envergonhados. Politicamente, considerados os ideais, programas e anseios, em nada se diferenciam uns dos outros, salvo pela quota do “Fundo Partidário” e pelos laços familiares que unem os seus fundadors e militantes. Ideologicamente, perdemos todas as identidades que pontuavam as diferenças e conflitos de pensamento e intenções. O espaços de poder, a capacidade nomeatória, os cargos nas mesas legislativas, os interesses venais e mortais, ministérios, conslehos em estatais bem provides – sobrepuseram-se às questões banais dos teóricos de outrora, eles próprios cooptados pela força irresistível do poder público compartilhado entre tribos amigas.
As ameaças ampliam-se, em nome da “governabilidade”, na visão do governo; crescem em nome do adesismo desenfreado de partidos e de seus arautos. A política, pelo destempero de seus feiticeiros, terminou judicializada. E a Justiça, politizada na medida de relações incestuosas entre quem nomeia e os que julgam.
Não desesperemos. Nada é para sempre. Os politicos, pela graça de Deus, são efêmeros; Deus foi piedoso, deu-lhes força e esperteza, mas não a imortalidade, como aos homens de letras foi-lhes conferida a Eternidade pelas Academias…
Não são as pessoas exemplares ou bem dotadas que asseguram que as sociedades sejam bem governadas. O bom governo das sociedades realiza-se quando o seu Sistema Político é fruto de uma “inteligência”coletiva, a que se assemelham regras, normas, procedimentos, instituições firmes, mecanismos de governo sérios, representatividade política reconhecida, atributos de uma democracia consolidade. Esses são os ingredientes que fazer com que uma sociedade possa resistir aos maus politicos.
A “inteligência”do Sistema Político e a mediocridade dos atores políticos
A democracia tem chances reais de sobreviver. Basta que se construa uma sociedade bem governada. Na medida em que a mediocridade dos atores públicos for contida pela “inteligência” coletiva do sistema político. A exemplo a história do ovo e da galinha, voltamos à primeira parada deste joguinho. A “inteligência” do Sistema Político faz-se com cultura política, com a consciência cidadã das responsabilidades políticas de cada um. (Alguns eminentes pensadores progressistas abominam ouvir esses termos “elitistas”…).
Consciência política e cultura idem são obras geracionais da Educação, do compartilhamento de oportunidades, da distribuição de oportunidades. Não se contrói uma democracia por decreto ou por injunções de constitucionalistas prenhes de citações latinas dos vedemecos de bacharéis.
Haroldo Araújo
Parabéns Dr. Paulo Elpídio pelo artigo publicado no SEGUNDA OPINIÃO.