Decifra-me ou te devoro, por Rui Martinho

Compreender os sucessos no momento em que se desenrolam é um grande desafio, é entender fatos e atos antes dos seus desdobramentos. Mais difícil ainda é quando somos abduzidos pelos equívocos dos paradigmas. O que se passa com o nosso país? Temos uma crise de governo, um profundo abalo na legitimidade do Poder Executivo. Mas o Poder Legislativo encontra-se completamente desmoralizado. Não temos partidos dignos deste nome; nem lideranças; nem programa capaz de aglutinar uma maioria que o torne legítimo. Mais do que uma crise de governo, temos uma grave crise política.

O Poder Judiciário pratica ativismo judicial destruindo a segurança jurídica; usurpa a função legislativa; está abalado por denúncias de corrupção; marcado por corporativismo; usufrui privilégios deploráveis; é objeto de graves suspeitas. O Ministério Público também não se constrange com os privilégios e com o corporativismo, além de oscilar de modo suspeito entre um garantismo penal leniente e o maximalismo penal açodado de um Torquemada. Os estados federados, a União e os municípios e estão falidos. O pacto federativo está em crise, que assim passa a ser uma crise de Estado.

Família, escola, igrejas, profissões estão em crise de identidade, perdendo funcionalidade, diminuídas pelo “desencanto” da cultura. Então temos mais do que uma crise de governo, política ou de Estado. O Brasil sofre mais, porque as nossas instituições sempre foram frágeis e o Macunaíma nunca foi muito sério. Mas a crise generalizada, é global. Países com instituições fortes vivem o drama da implosão da civilização que de ocidental passou a global. O iluminismo pensou que poderia expurgar a cultura de todo componente místico, de toda legitimidade baseada na inércia da tradição ou no personalismo das lideranças carismáticas. O exercício da crítica se exacerbou, destruiu os mitos legitimadores rapidamente, não deixando tempo para a sedimentação de novas narrativas legitimadoras. O iluminismo tardio ou seus últimos rebentos produzidos no século XIX, dominaram o século XX e destruíram as bases de uma civilização que havia dado ao mundo o habeas corpus, o mandado de segurança, as garantias do devido processo legal, um extraordinário progresso da ciência, o Estado laico, a educação formal universal e a democracia, entre outras coisas. Mas não trouxeram melhor. A anomia espreita o mundo, depois de haver se instalado no Brasil.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

Mais do autor

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.