DA LEITURA PARA A REDAÇÃO, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

A qualidade do ato da leitura não é medida pela qualidade intrínseca do texto, mas pela qualidade da reação do leitor. […] O significado não está na mensagem do texto, mas na série de acontecimentos que o texto desencadeia na mente do leitor.”

(Vilson J. Leffa, em ASPECTOS DA LEITURA: Uma perspectiva psicolinguística; pág. 14).

Na segunda metade do ano de 2005, atraído pela oferta de cursos não-presenciais – o ensino à distância já invadira o universo acadêmico e, potencializado pelas ferramentas que a engenharia eletrônica disponibilizava na área da comunicação, ia adquirindo status de produto de excelência em processos de formação profissional fora do ambiente físico da escola –, entendi interessante participar, tanto por já haver conduzido eventos de tal natureza no âmbito do órgão público em que trabalhava, quanto por ser estudante de Letras/Português na UFC (Universidade Federal do Ceará), de um promovido pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, denominado DA LEITURA PARA A REDAÇÃO. E não me arrependi. A experiência mostrou-se por demais rica.

Já no Tutorial II, a facilitadora do processo – a professora Ana Lúcia – propôs-nos a leitura do conto UM DIA DESSES*, de Gabriel García Márquez, enfatizando que “durante a leitura, nossa memória é ativada, fazendo com que muitos fatos, lembranças, ideias, julgamentos, comentários nos venham à mente”. A prática consistia, então, em que procedêssemos às anotações de tudo que o texto ia provocando em nossa memória, enquanto nos deleitávamos com a viagem proposta pelo autor, para, após inserir o produto final de nossas ilações (inferências) no “Fórum: Prática”, pudéssemos discutir, com todo o grupo, os conceitos teóricos abordados na respectiva unidade.

Vejam na sequência, compreensíveis leitores, o relato da minha experiência com a atividade.

I – “A segunda amanheceu morna e sem chuva.”

Logo de início, a referência à segunda-feira me fez lembrar os muitos rótulos que costumamos impingir a esse dia da semana, todos relacionados com a preguiça ou a ressaca (ou a ambas), rescaldo do descanso(!) do fim-de-semana bem ou mal usufruído. Para mim, a segunda-feira adquire a importância de um “início”, de uma “largada” ou “retomada”. Se desfruto de uma boa segunda, toda a semana fluirá tranquila e proveitosa. Se não…

II – “Dom Aurélio Escovar (…) usava uma camisa listrada, sem gola, fechada em cima por um botão dourado, e calças presas a suspensórios elásticos.”

A descrição das vestes de Dom Aurélio, “dentista sem diploma e bom madrugador”, permitiu-me vê-las como se estivessem à minha frente, além de fornecer indícios do tempo e do espaço em que a narrativa de Gabo se ambientara.

III – “Era rígido, magro, com um olhar que raras vezes correspondia à situação, como o olhar dos surdos.”

A expressão “o olhar dos surdos” desviou a minha atenção do texto para o teto da sala em que me encontrava, como se lá eu pudesse encontrar algo que me levasse à recuperação de alguma imagem conhecida de surdo olhando para qualquer coisa. A branca rigidez da laje concorreu para que admitisse – também por influência do texto – como verdadeira tal assertiva: pois não é mesmo que o olhar do surdo revela muito pouca, ou quase nenhuma, correspondência com a situação que vivencia! É algo assim meio fora de frequência…

IV – “… girou o aparelho até a poltrona de molas…”

Quando Márquez diz que o dentista “girou o aparelho”, suspendi automaticamente a leitura ali e reli, muito rapidamente, o parágrafo introdutório do conto, à busca de alguma informação que me ajudasse a criar a imagem do “aparelho”. Embora se tratasse de um consultório odontológico, percebi que só conseguiria isso mais adiante: “Era um consultório pobre: uma velha cadeira de madeira, a broca de pedal…”. O leitor ideal levanta hipóteses, elabora projeções, cria expectativas, avança, retrocede, confirma ou abandona pressuposições, num jogo – às vezes, não percebido – de ir e vir, de fluir e refluir, mas de fruir quase sempre.

V – “Fez uma pausa para olhar o céu pela janela e viu dois urubus pensativos…”

O olhar pela janela e os urubus pensativos fizeram-me retornar à minha querida Baturité – cidade serrana a cem quilômetros de Fortaleza, no sentido sertão central – e aos meus tempos de estudante salesiano. Das janelas de alguns ambientes do colégio, podíamos ver os telhados irregulares e envelhecidos das casas do entorno. Quantas histórias, quantas aventuras, quantas desventuras, acertos e desacertos, amores e desamores, paixões e traições (vivências, enfim!) aqueles telhados (e tantos outros!) velaram e ainda velam com a sua mudez, com a sua rígida indiferença!

VI – “A voz desafinada do filho de onze anos tirou-o do seu devaneio.”

A referência à voz do filho do dentista me transportou, de imediato, para a minha pré-adolescência e o desconcerto de minhas cordas vocais, numa mistura risível de sons graves e agudos, e, na sequência, para o meu ambiente familiar; juro que ouvi Anna Júlya, de 1 ano e 7 meses, minha neta e meu xodó, chamando-me ao seu estilo bem peculiar: – Vovô-ô-ô-ô-ô! A felicidade existe, disso não tenho a mais mínima das dúvidas!

VII – “Diga a ele que não estou aqui”.

Quando Dom Escovar (não seria Escobar?!) sugere que o filho minta, para o delegado, sobre estar ele no consultório, matutei um pouco sobre o hábito – de todos nós, com raríssimas exceções (se é que existem!) – de fazermos com que outros mintam, em especial em chamadas telefônicas inoportunas, em nosso benefício. Quem já não apelou para um “Se for pra mim, Fulano, diga que não estou”? Daí, vieram-me à lembrança dois fatos pitorescos, os quais passo a narrar.

FATO I. A personagem principal é a minha filha Juliana, então com cinco ou seis anos de idade. Adorava atender o telefone. Numa certa ocasião, após o clássico “Alô!”, indagou-me: – E aí, pai, é pra dizer que o senhor não está? – Isso na maior naturalidade e sem colocar a mão sobre o fone, obviamente. Isso me exigiu uma boa explicação ao interlocutor, um amigo de longas datas.

FATO II. Um colega de trabalho, envolvido circunstancialmente em alguma situação vexatória, pediu para que, se alguém o procurasse em eventual ligação telefônica, negássemos a sua presença. O telefone tocou. E quem atendeu? Outro colega cuja religião não admitia, em hipótese alguma, o cometimento de atos atentatórios à fé que professava, ou seja, não podia mentir. Mas ele se saiu muito bem dessa situação. Escondeu-se atrás de uma coluna e salvou a pele dos dois: – Olha, amigo, o Sicrano não está, no momento, ao alcance da minha visão.

VIII – “Ele diz que se você não arrancar o dente lhe dá um tiro.” […] “Abriu por completo a gaveta inferior da mesa. Ali estava o revólver.”

Com a ameaça do tiro pelo delegado e o cuidado do dentista em deixar à mão o revólver, Márquez parece preparar o leitor para um duelo de vida ou morte, ao melhor estilo “faroeste americano”, com o mocinho adentrando o “saloon” em trajes típicos e o bandido sentado a uma das mesas, em posição estratégica para sacar. Bang! Bang! No desenrolar da cena, o autor deixa o leitor entrever quão complexa é a natureza humana. Capaz de tudo… e mais alguma coisa.

Aqui, resgatei na memória imagens de um dentista – este formado, com diploma oficial e paletó de cor preta – que fez fama em minha terra natal, aí pelos idos dos anos 60 e 70, em face da forma como tratava os seus pacientes (e haja paciência!), sempre com exagerada transparência, a verdade nua e crua acima de tudo. Era um sábado, dia de feira naquela cidade. Pessoas simples de toda a região – Maciço de Baturité – ali acorriam para realizar pequenos negócios. Um deles, chapéu de palha, barba por fazer, roupas de mescla surrada, chinelos de couro, aproximou-se da janela do consultório do cirurgião-dentista e, com algum esforço, conseguiu, por sobre um anteparo de lona azul, ver um dedicado profissional em plena atividade. Na sua simplicidade, perguntou, então: – Doutô, o sinhô pode distrair um dente meu? – O doutor virou-se abruptamente para o lado da janela, fixou um amedrontador olhar de reprimenda no já ex-quase-cliente seu e esbravejou: – Eu distraio mesmo é a senhora sua mãe!

IX – “Tem que ser sem anestesia…”

A extração – com dor – do dente do delegado, cujos olhos se encheram de lágrimas, mas que não deu sequer um suspiro, fez-me vaguear pelos tempos em que ainda não havia sido descoberta a anestesia. O que não era feito nessas horas… Ah, lembrei-me também de um procedimento cirúrgico a que me submeti, com a anestesia tendo de ser aplicada no local mais dolorido da parte intumescida. Até a lembrança ainda me causa dor!

X – “Vá se deitar – disse – e faça bochechos com água salgada.”

A orientação dos bochechos com água salgada trouxe-me à mente um recente comentário de uma especialista em periodontia, para quem é bastante prejudicial tal procedimento, na medida em que atrasa o processo de coagulação do sangue e, por extensão, de cicatrização do ferimento, além de causar irritação na região afetada.

XI – “Me mande a conta, disse.

Para você ou para o município?

[…] É tudo a mesma merda.”

O desfecho do conto – “É tudo a mesma merda” – bem que se ajusta, na exata medida, ao momento político de nosso Brasil varonil e aos seus intrépidos parlamentares. Todos farinha do mesmo saco, atolados até a medula na mais pútrida lama (Epa!). [Estávamos em setembro de 2005. Há doze anos, pois!].

“O texto permanece o mesmo, entretanto há uma mudança significativa na compreensão devido à ativação do conhecimento prévio, isto é, devido à procura na memória (que é nosso repositório de conhecimentos) de informações relevantes para o assunto, a partir de elementos formais fornecidos no texto.”

(Angela Kleiman, em TEXTO & LEITOR: Aspectos cognitivos da leitura; pág. 22).

P.S.: * 16 CONTOS LATINO-AMERICANOS. CELARC/UNESCO. São Paulo: Ática, 1992. Texto recuperável em http://pubhtml5.com/qutp/wlma, com algumas atualizações da tradução.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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