Da globalização ao hiperindividualismo, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Uma tensão que os governos das democracias modernas precisam enfrentar no tempo presente reside em dois processos de grande amplitude, duas faces de uma mesma medalha. Por um lado a acelerada globalização da economia, com a dominação financeira mundial processada pelo livre fluxo dos capitais somada com a produção de uma cultura de massa que reforça os valores dogmáticos e o modus operandi da ideologia ultraliberal. Por outro lado, o crescimento do individualismo, com elevada dissolução dos vínculos coletivos, “por uma subdivisão ao infinito”, no dizer de Tzvetan Todorov em seu livro Os Inimigos Íntimos da Democracia, com as normas comuns da sociedade cedendo cada vez mais ao poder egoístico pessoal.

A globalização gera uma sensação das perdas das identidades convencionais para grupos mais vastos, além das fronteiras locais e nacionais. Por exemplo, numa segunda-feira qualquer na qual facilmente verificaríamos gentes nativas debatendo sobre o resultado do futebol da região, é muito frequente hoje atestar debates calorosos e apaixonados de cidadãos comuns locais torcedores de grandes times europeus. Se isso se dá com os clubes de futebol, o mesmo fenômeno ocorre em relação a artistas, produções culturais, cidades, formas de comportamento e de consumo: hoje grande número de mulheres brasileiras urbanas são “loiras”, numa tentativa de mimetizar o padrão cultural ditado pelo centro de poder mundial.

Consequentemente, essa percepção global produz um enfraquecimento da autoridade tradicional e, de quebra, hipertrofia a afirmação da autonomia individual. Cada indivíduo quer ser julgado em nome de normas que ele mesmo nomeia e adere “livremente”, e não à luz de normas que lhe sejam colocadas pela sociedade política. “Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos, somos uns boçais”, dispara Caetano Veloso. Nessa cultura ultraliberal o indivíduo passa a ser tudo. E ao exigir a adesão cega aos seus postulados, apresentados como verdades científicas e não como possibilidades que promovam opções voluntárias, o ultraliberalismo torna-se uma religião secular: uma religião que provoca uma “inquisição estrutural”, pois com o enfraquecimento da lei e com o hiperdimensionamento da vontade individual, nas relações assimétricas entre o patrão e o servo, entre o rico e o pobre, o que escraviza é justamente a liberdade dos fortes uma vez que reúnem condições excepcionais de reclamar e de auferir para si meios de aumentar sempre mais o seu poder e explorar o mais fraco. Portanto não se trata de uma democracia, mas de uma plutocracia. O poder aqui se torna dominação.

Acontece que numa democracia todos são iguais perante a lei; o Estado existe como instituição garantidora dos direitos de todos os membros da sociedade nacional. Ele detém um poder próprio como fiador da legalidade, devendo entre outras coisas preocupar-se em defender o direito dos mais fracos, com o futuro mais longínquo e com os valores imateriais. A autoridade democrática é conferida pelos soberanos ao escolherem livremente seus representantes e ao participarem das decisões referentes aos processos e valores que vão incidir sobre suas vidas. No contrato político – a Constituição – os soberanos estabelecem o conteúdo para que o Estado caucione a validade do que foi pactuado. Portanto, a lei deve traduzir e garantir a vontade do povo asseverando que uma sociedade não é a soma de indivíduos atomizados com suas vontades particulares impostas a todos os outros custe o que custar. Um grupamento que funcionasse regido somente pelo poder dos indivíduos seria uma encarnação perfeita da barbárie. Todos nós temos direitos anteriores provenientes do nosso pertencimento ao gênero humano, além de direitos e deveres de nosso pertencimento a uma sociedade. E o Estado deve garantir esses direitos.

Por último, um dos princípios democráticos recomenda que todos os poderes sejam limitados; não só o do Estado, mas também dos indivíduos, inclusive e principalmente daqueles que detém maior poder econômico. Como lembra Todorov, “a liberdade que uma galinha tem de atacar uma raposa é uma piada, pois elas não têm a capacidade para isso”. Ao contrário, a liberdade da raposa é perigosa porque além de mais forte, ela é predadora.

O dia 28 de abril é uma etapa importante na recondução do Brasil à sua normalidade institucional golpeada por um conluio de indivíduos poderosos que assaltaram nossa democracia tendo em vista a implantar seus interesses de classe contrários àquilo que foi definido pelo pacto social contido em nossa Constituição de 1988. Recordando o conceito habermasiano, as ruas são o espaço público natural da democracia. A praça é do povo assim como o céu é do condor, lembra em bom tom o nosso baiano Castro Alves. Vamos às praças!

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .