Criminalização da política, por Filomeno Moraes

“Criminalização da política: a falácia da ‘judicialização da política’ como instrumento democrático” é o título do último livro da professora Vânia Aieta’, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Lançado no apagar das luzes do ano passado, o estudo enquadra-se bem na conjuntura, lançando luzes no animado debate que se trava no país sobre o papel do Poder Judiciário, nomeadamente o da Justiça Eleitoral. A pesquisa que originou o livro se norteou nas seguintes propostas: estabelecer a diferença entre ativismo judicial e judicialização da política, com a crítica ao último fenômeno; analisar as evidências de comprometimento político de julgados, em vista de estarem maculadas pelo legado do intérprete, que acabam por produzir sentenças ideologizadas; estabelecer liames entre a influência dos meios de comunicação e o Poder Judiciário, com julgamentos comprometidos por interesses divorciados do devido processo legal; apontar a dinâmica dos considerados “julgamentos de exceção”, destinados aos indesejados, aos párias políticos, aos “inimigos” do sistema vigente.

O foco da pesquisa assestou-se, pois, na realidade hodierna de “criminalização dos políticos”, encarecendo as contribuições de autores que percebem, nos efeitos do punitivismo imperante, um progressivo desemparo dos direitos fundamentais, nomeadamente, os contemplados pela legislação eleitoral. Ou seja, progressivo desemparo dos direitos políticos. A primeira parte do estudo preocupa-se com a tentação – vislumbrada no mundo jurídico, e com esteio conservador – de basear-se, no âmbito penal, nas instituições policiais e carcerárias; e, no âmbito eleitoral, nas condenações às penas de inelegibilidade, por meio da defesa do encarceramento e, em especial, “pela punição mais cruel aos representantes eleitos pelas classes menos favorecidas”, para os quais a inelegibilidade é um verdadeiro banimento do mundo político, com a consequente invisibilidade política.

Na segunda parte, o texto faz a distinção entre ativismo judicial e judicialização da política. O primeiro fenômeno, encontrável aqui e alhures, existe, em boa mediada, como decorrência do papel mais afirmativo que ganham as constituições, com a ampliação da interpretação constitucional. E procura, então, impor barreiras ao ativismo judicial, bem como ao que a autora classifica “como a sua distorção”, que é a judicialização da política. E caminhando por entre as estradas cheias de curvas de um positivismo político moderados e as manifestações pós-positivistas da atualidade, opta pela defesa do positivismo moderado de Norberto Bobbio, para permitir a interação entre princípios e regras.

Por sua parte, a obra encarece enfaticamente a divisão constitucional dos poderes, com a identificação inarredável do “momento da legislação” e do “momento da jurisdição”, tudo no sentido de afastar as teses que se postam na defesa do ativismo judicial, a conferir ao magistrado-intérprete uma competência alargada parar ir além, e até contra, a Constituição Federal.

Na terceira parte, analisam-se os fatores psicológicos inconscientes e o peso do legado valorativo pessoal do magistrado na construção da decisão judicial. Para tanto, incursiona-se no paradigma teórico de Konrad Hesse, no que concerne à pré-compreensão do intérprete, e esmiúça-se a análise transacional relativa à teoria da personalidade do intérprete.

Com a “Criminalização da política…”, Vânia Aieta proporciona, de modo duro, embora sem perder a ternura, uma reflexão que lança luz sobre alguns dos dilemas vivenciados na conjuntura. Com certeza, e lembrando a Escritura, a obra não vem trazer a paz, mas a espada. Espada a brandir, com argumentos, a necessidade de pôr-se sob o escrutínio a efetivação da Constituição Federal. Com certeza ainda, a obra poderá ajudar a reverter a constatação da autora: “nossa democracia vai assim se esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que confere a aparência de um Estado Democrático, mas ao invés de ampliar e efetivar direitos vem suprimindo-os paulatinamente”.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).