Brasil, 1998. Há pouco mais de uma década o País ensaiava seus primeiros passos rumo ao restabelecimento de sua democracia. Ao mesmo tempo, o cinema nacional também se encontrava num importante movimento de retomada da sua produção. À estagnação imposta pelo Governo Collor no início dos anos 1990, a cinematografia brasileira ia aos poucos reencontrando sua dinâmica em termos de feitura e linguagem. Dentro desse panorama é que se encontra Central do Brasil (1998).
Em seu terceiro longa metragem, Walter Salles conta a estória de Josué (Vinícius de Oliveira). Garoto que, após a morte da mãe, parte numa busca por reencontrar o pai que ele até então desconhecia. Sozinho no Rio de Janeiro, o pequeno conta apenas com a ajuda de Isadora (Fernanda Montenegro), uma professora aposentada que escreve cartas numa estação de trem da cidade. Juntos, eles partem para o Sertão da Bahia numa viagem de buscas e descobertas.
O filme possui um traço de narrativa clássica muito estabelecido. E isso é algo que nos fica bastante claro desde seus minutos iniciais. Temos a estação, os relatos das pessoas que estão de passagem mas deixam sua mensagem para alguém distante, combinado com a fotografia precisa de Walter Carvalho e a trilha de Jaques Morelenbaum e Antonio Pinto. Essa é a obra. E nesse sistema ela se apresenta nos tomando pela mão, chamando-nos para dentro dela.
E nela embarcamos. Portanto, partilhamos de um trabalho que evoca a técnica. Uma vez que como processo, o cinema se efetiva quando ele nos dar a ver o mundo por meio de determinado enquadramento. E o quadro que Central do Brasil nos mostra emerge de uma estética do plano fixo, da composição que remonta à pintura e que nos apresenta uma forma de olharmos para o mundo de maneira horizontalizada.
É claro que as imagens do longa nem sempre obedecem a esse rigor estético. Em alguns momentos essa câmera passeia pela locação e nos deixa a sensação de que flutuamos de um canto a outro sem esforço. Tudo é construção, obviamente. Mas que naquele final de anos 1990 dizia bastante das escolhas que o cinema brasileiro passava a fazer. E esse é o traço essencial para refletirmos nosso fazer artístico naquele fim de século.
Porque olhando através de todas as camadas das quais esse filme é feito, há uma forma. Essa, refletida por uma plasticidade que nos traz toda uma reflexão acerca de um cinema de gênero brasileiro. É interessante pensarmos “Central” como um Western. Aí, os planos fixos e o gerais, se justificam numa proposição dessa cinematografia nacional que incorpora a universalidade oriunda do fazer artístico. E o Sertão brasileiro é também o universo árido dos faroestes ítalo-americanos do século XX e de suas personagens que travam cotididianas batalhas de vida em busca da afirmação de uma identidade. Essas são as trocas permitidas pelo cinema.
Mas esse exercício metamorfósico também passa pelo conteúdo da obra. E no que diz respeito aos temas que a revestem, ela se afirma como um filme de personagens da mesma forma universais. São pessoas incompletas que assumem tarefas cuja consistência é dada na procura pelas respostas que a vida, infelizmente, por ela mesma nem sempre oferece. É preciso o deslocamento. É necessário trilhar-se um caminho. Vai ver, Josué seja a própria democracia brasileiro em seus 10 anos de existência. Uma Constituição que ainda está na sua infância. Vai ver, Josué e Isadora são o próprio cinema nacional tentando entender qual seu espaço dentro dele próprio e no mundo.
E se formos um pouco além disso? Vamos pensar o Brasil como fenômeno político. Em 1998 chegávamos no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e apesar de todas as complexidades que nossa recém democracia concentrava, poder pensar num futuro para tudo o que podemos vir a ser é uma espécie de metáfora do papel que nosso País teria e tem na atual configuração geopolítica.
Guardadas as devidas proporções, Central do Brasil não veio a mudar o mundo. E na verdade, filme algum será capaz de fazê-lo. Mas ele nos ajuda a refletir em maior ou menor medida o lugar da estória dentro de um exercício de realização em audiovisual. Seja numa proposta mais acentuada ou não enquanto tema, a relevância está na forma como a política se insere na mensagem impressa na tela. E no caso de Central, a mensagem é a de um Brasil que precisava seguir indo em frente. E assim o fez.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Central do Brasil
Gênero: Drama
Tempo de duração: 113 minutos
Ano de lançamento (Brasil): 1998
Direção: Walter Salles