“O que os homens são coincidem com o que produzem, e o que produzem
com o modo como produzem”.
O debate sobre a economia é o debate sobre a vida. Nós seres humanos, por mais que queiramos, não somos os primeiros habitantes do Universo. A Natureza, durante bilhões de anos, trabalhou e continua a trabalhar pela vida. Esta é sua teleologia. E nós humanos, filhos da Natureza, que aqui chegamos muito depois, por sermos os únicos capazes de consciência e de autoconsciência, consequentemente do ato livre, temos a responsabilidade de continuar e garantir a vida presente e futura que a vida nos legou.
Como nos ensina o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, a experiência humana da cultura é e está contida nos atos e fatos, nos gestos e nos feitos, dotados de simbologia e de significados, com que nos criamos e criamos o mundo. Gestos realizados em situações interativas de troca e reciprocidade, gerados e geradores das diferentes dimensões da vida social. Gestos interativos através dos quais, continuamente, transformamos coletividades orgânicas em comunidades sociais.
Eugene Enriquez destaca que só o amor atua no desenvolvimento da humanidade como um todo do mesmo modo que nos indivíduos como fator civilizador no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo, apontando para uma transformação moral das subjetividades capazes de encontrar motivações intrínsecas geradoras de novos comportamentos éticos individuais e sociais, no esforço de construir novas realidades de mundo. Um amor capaz de se tornar diálogo, que saiba abrir-se para todos. Dialogar significa dar o que temos dentro de nós para também receber e enriquecer-nos da realidade do outro. Em outras palavras, o diálogo é capaz de gerar uma cultura nova para continuarmos a caminhada pela nossa humanização. A humanização é a grande tarefa da humanidade: o ser humano se forma como espécie na luta incessante pela própria humanização. É preciso constatar a desumanização como um processo não natural, mas histórico, e agir para recuperar a humanidade que nos foi retirada. A humanização se dá coletivamente, no processo de produção social.
Para se compreender o humanismo do mercado e da economia moderna, devemos partir da comunidade hierárquica antiga e da tensão antifeudal. O humanismo do mercado com o fascínio que exerceu e exerce deve ser visto a partir do grande projeto, que culminou na modernidade, de imaginar e construir uma vida comum entre indivíduos livres e iguais. A comunidade antiga não consentia a emergência da diversidade, uma vez que a “communitas” era totalizante. A “communitas” antiga de fato impedia o surgimento do indivíduo porque simplesmente não o “via”. Foi contra este tipo de comunidade não escolhida pelos indivíduos, baseada no status, na hierarquia e não-liberal, que a modernidade reagiu. Com a crise da “communitas” nasce o indivíduo e nasce a alteridade, mas nasce também outro problema.
O economista Luigino Bruni lembra que o mercado para responder à vida do indivíduo moderno despoja as relações humanas de cada elemento pessoal que revele a diversidade e a identidade mais profundas (religiosa, étnica, nacionais etc.): para negociar com o outro eu não preciso reconhecê-lo em sua alteridade existencial dramática. O sistema de preços age como mediador que prescinde de relacionamentos mais intensos. O mercado desfigura e nivela a diversidade humana a uma dimensão mínima para que se possa negociar com qualquer outro, sem levar em conta a situação de vida de cada um. Este “universalismo” não é uma rede de encontros e de reconhecimentos entre os diferentes, mas mutuamente indiferente entre sujeitos tornados “homogêneos” apenas para permitir a “troca sem a devida diversidade”: a extraordinária força inovadora do mercado e sua capacidade de produzir solidão e infelicidade são ambas resultado do formato da invenção da economia moderna.
Assim, a sociedade que deriva da cultura capitalista é uma sociedade complexa que mercantiliza toda a existência, incapaz de instaurar, de forma ampla, profundas relações interpessoais. Neste ambiente cultural de legitimação do domínio, da posse egoísta, do controle, da ordem e do progresso, da violência, a burguesia historicamente encontrou um quadro sempre mais propício para afirmar-se como classe dominante estendendo a nova convicção do domínio da natureza para um domínio social e econômico do capital sobre o trabalho, produzindo uma maior separação e divisão entre a comunidade humana.
A liberdade burguesa é a liberdade de escolha enquanto liberdade utilitarista, liberdade individual para escolher o que ser deseja independente do prejuízo que se possa causar ao outro. A escolha individual é um bem absoluto em si. Como afirma o prêmio Nobel em economia, Amartya Sen , o cálculo utilitarista tende a não levar em consideração desigualdades na distribuição da felicidade, importando apenas a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual, apresentando forte descaso com direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas da utilidade. É negativa por ser uma liberdade atuada para a dominação do outro, ou para a afirmação do eu em detrimento do outro.
Portanto, é preciso pensar uma nova estrutura de produção capaz não apenas de repartir de forma mais justa o resultado do trabalho social com todos aqueles que deles participam, intelectualmente e fisicamente. Mas o modo como a produção material deve ser realizada precisa contemplar as condições de criação, execução, distribuição do resultado e de lazer capazes de permitir a todos os envolvidos no processo de produção reconhecerem-se em tal processo como sujeitos criadores e beneficiados pelo mesmo, e não apenas como força de produção. Trata-se de elaborar um projeto de justiça econômica a ser alcançado, uma condição fundamental para a uma cultura humanizada local e globalmente à qual muitos deram e continuam gastando suas existências.