CAMINHOS DE UM PASSADO DISTANTE CUJO MAPA SE PRESERVA NA MEMÓRIA, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“Ele conseguia ter duas opiniões sinceras e contraditórias sobre o mesmo assunto.”

[Carlos Heitor Cony, em Quase memória. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006; pág. 236]

A vós, que merecestes conhecer a minha pacata e acolhedora Baturité dos idos de sessenta ou setenta do século passado, permito-me convidar-vos a reviver jornadas do cotidiano de então, agora por trilhas preservadas na memória, numa caminhada de reminiscências, de relembranças, de sonhos enfim, mas como nos velhos tempos em que era quase obrigação andar a pé, por falta de condição e de condução, convindo lembrar que os citadinos meios de transporte da época se restringiam ao lombo (cangalha ou sela ou dorso nu, além da garupa) de animais de carga – jumento ou jegue e burro – ou de passeio – o cavalo –, de uso quase exclusivo de seus proprietários, às raras bicicletas e aos poucos jipes de praça – de duas ou quatro portas, de assentos pouco confortáveis sob cobertas de lona presas a estruturas tubulares, sobre feixes de molas em barras de ferro justapostas que se transformavam em matéria-prima nas grossas e calosas mãos dos ferreiros, artífices que a fogo e força produziam foices e facões de longuíssima vida útil, e entre os para-choques (dianteiro e traseiro) de ferro maciço (nos abalroamentos, o homem sofria mais que a máquina), os quais praticamente serviam aos cidadãos comuns apenas em situações extremas.

Saiamos, pois, daqui, da pracinha à margem da principal via pública que dá acesso ao centro da cidade, que já cruzou o Sanharão, detestado e amaldiçoado pelas senhoras de bem porque em seu seio grassava a perdição dos homens atraídos pelos pecaminosos desejos da carne, generosa e abundante ali, cujo rótulo “baixo meretrício” soava socialmente excludente, que também já cruzou a Feira do Gado, mais tarde denominada Duque de Caxias, que adentrou o bairro entre duas faixas contínuas de casas de alvenaria, de gente simples e modesta. Em três planos de suave declive – um quadrilátero e dois triângulos justapostos –, a arborizada e iluminada praça do Putiú era certamente a nossa principal área de lazer, guardiã de memórias juvenis que mesclam os encontros de interesses vários, as conversas desimportantes, mas que davam sustentação a amizades verdadeiras, os flertes ou oblíquos olhares de concupiscência, os românticos jogos de conquista, às vezes arriscados ante o olhar nada amistoso dos pais da jovem por nós eleita, os namoros sem compromisso, embora alguns enveredassem paulatinamente pelas retilíneas vias do comprometimento. Quantos casais não saíram daqui diretamente para o cartório e para o altar!

Caminhemos em direção ao centro da cidade – onde pulsava a economia, fundamentalmente agrícola, de uma metrópole sertaneja encravada ao pé de uma serra sempre grávida de encantos, de gorjeios, de olores e sabores –, em sentido contrário ao da estradinha de pedra tosca com destino à localidade do Coió e alhures, deixando à nossa retaguarda a centenária estação ferroviária, em cujo entorno protagonizamos tantas histórias que certamente contribuíram no processo de moldagem dos nossos humanos perfis e que muito trabalho deram aos nossos irrequietos espíritos; o bar do Meu Santo, o celibatário ser, cuja paciência mostrou-se sempre capaz de nos aturar em nossas molecagens e presepadas, tratando-nos como se fôssemos os filhos que não conseguira procriar; e o modesto restaurante de dona Alaíde, com seu saboroso caldo de carne moída e o convidativo café quente e mais preto “que as asas da graúna”.

Prossigamos, pé após pé, pela calçada de meio-fio que delimitava o regular calçamento de paralelepípedos, tendo a um lado o casario – residências entremeadas de estabelecimentos comerciais e de serviços, com destaque para a barbearia do pai do Titico, pandeirista arruivado, o paraibano contador de causos, Zé Martins, que costumava perguntar ao freguês já de barba feita: “Qué árrrco, tárrrco ou qué qui mui?” (Tradução: quer álcool, talco ou quer que molhe?), e a modesta escolinha das três idosas irmãs alfabetizadoras – Graziela, Ester e Alice – que produziam o alfenim mais famoso da região, com direito a alguns procedimentos não recomendáveis pela saúde pública, mas perdoados pela fiel clientela que fazia vista grossa a questiúnculas do gênero – afinal, o fim importava muito mais que o meio. Construções bem ao pé do morro conhecido como Alto do Bode, tinham quintais íngremes e cheios de pedregulhos, com graves problemas de escoamento das águas pluviais. No lado oposto, erguia-se o velho galpão onde instalada a oficina ferroviária, em cuja branca e larga platibanda lateral sobressaíam três grandes letras em preto: RVC, ou seja, Rede Viação Cearense, as quais, para nós, os moleques, significavam preferentemente: Rapariga Velha Cansada; abria-se a entrada para a mansão da família Viana, cuja riqueza provia um “modus vivendi” que destoava do de todas as outras do bairro; e zuniam as engrenagens da Usina Putiú, de propriedade do seu Raimundo, o líder do clã, em que se dava o beneficiamento de todo o algodão produzido na região e que despejava no ar, além de um quase imperceptível pó branco, o cheiro característico, meio enjoativo, do resíduo produzido à base do caroço de que já se extraíra o óleo de uso comestível, e destinado à alimentação do gado bovino.

Transponhamos a via férrea – popularmente conhecida como a linha do trem – e a ponte sobre o rio Putiú, gigante nas enxurradas e anêmico nas estiagens. Agora, acompanham-nos neste trajeto, virtual e telúrico, o canavial dos salesianos à esquerda e o bananeiral dos Marinhos à direita. Antes, porém, não deixemos ao largo de nossa caminhada o início da estradinha carroçável de acesso ao bairro Lajes, de nosso uso preferencial – em dias sem chuvas, porquanto o rio tinha de ser atravessado em seu próprio leito, calças arregaçadas até o joelho, sapatos ou chinelos dependurados nos dedos da mão – nas noites de festas na capela em construção, atual igreja de Nossa Senhora do Rosário, sonho do abnegado Mestre Josué, transformado em realidade com o tempo e a sólida disposição dele e das pessoas que acreditaram e investiram nesse sonho.

Lembremo-nos, também, do casarão de porta lateral e três grandes janelas frontais, com telhado de dupla inclinação – pra frente e pra trás – demarcada por cumeeira alta, localizado no centro de uma ampla área aplainada pela ação do homem, em plano bem inferior ao da via por onde ora caminhamos, cujos donos costumavam expor gaiolas de vários tamanhos e formas, em que mantinham aprisionados – à época, tal “hobby” não era considerado crime – belos e canoros exemplares de galo-de-campina, canário-da-terra, corrupião, gola, papa-capim, azulão, sanhaçu, pintassilgo, bigodeiro, além de uma reluzente graúna, cujo mavioso canto se destacava dos demais e chamava a atenção de quem passasse pela calçada da rua, lá no alto.

Emerge da memória a “Neguinha”, uma graúna de qualidade, que familiares aracoiabenses da minha segunda mãe a presentearam e que tanto nos alegrou com suas extasiantes apresentações. Bastava que sua dona pronunciasse enfaticamente o seu nome – Neguinha! – para que ela alteasse o bico pontiagudo, estufasse o peito de penas eriçadas, fizesse tremer as longas penas das asas e do rabo e cantasse. Ouvi o meu pai dizer que se tratava de música em que cabia letra e, seguindo o natural fio melódico da obra de arte que brotava do âmago daquela criaturinha de pretas penas, ele cantarolou estes versos, cuja autoria, infelizmente, jamais consegui identificar:

“Não quero que os meus filhos se casem com filhos de anum.

Por quê? Por quê?

Porque eles são pretos, pretos, pretos, pretos”.

Numa manhã qualquer, o véu da morte encobriu, mais uma vez, de grande tristeza e dor a casa dos meus pais. No piso da ampla gaiola, repousava inerte o corpo da Neguinha. Juntei essa vivência marcante com a da perda do Jussy, um gato peludo, de fino trato, que ganhei de presente ao completar dois anos e que algum tempo depois teve de ser sacrificado à bala, em meio ao sofrimento que nas entranhas lhe causava o que meu pai chamou de “bola de vidro”; declarei, então, a minha irrevogável renúncia, para todo o sempre, a qualquer tipo de relacionamento de que pudesse resultar apego a animal de estimação, de qualquer gênero, de qualquer raça.

Retomemos a caminhada. Mais adiante, tendo como limite, à direita, a via de acesso à residência dos Marinhos, um casarão encimando a parte mais alta do terreno de propriedade dos pais do amigo Pedro Jorge, também alvinegro de quatro costados, instalavam-se os equipamentos do que modernamente podemos chamar de complexo educacional da rede particular ou privada, de formação essencialmente católica, com rigorosa prática pedagógica sob a orientação do pensamento salesiano, idealizado por Dom Bosco, com regimes de externato, para jovens da comunidade, e internato, para originários de outras cidades e até estados, e com segregação por gênero. Aos padres do Ginásio Domingos Sávio, cabia a educação dos moços. Às irmãs do Instituto Nossa Senhora Auxiliadora, competia a educação das moças. As interações, não autorizadas no âmbito dessas escolas, ocorriam naturalmente em espaços públicos. Como as aulas aconteciam no período da manhã, em mesmo horário, moços e moças perfaziam, em animados grupos, o trajeto casa-escola-casa, sem registro de graves desvios de conduta. Alguns flertes inocentes, nada mais que isso.

A vós, que tão atentamente vindes me acompanhando nesta andança pelo passado, apraz-me confessar-vos que era a minha atual parceira a eleita para os meus tímidos flertes, então não correspondidos – o que me inibia e me atiçava. Ambos cursávamos a mesma série ginasial: a quarta e última.

Ano de 1968.

Dois jovens padres, com ideais revolucionários e comportamentos vanguardistas, chegaram a Baturité. Na paróquia, o padre Paschoal, de beleza física apaixonante aos olhos das prendadas moçoilas, usava linguagem bem popular e, para o espanto das carolas, sorvia alegre e elegantemente algumas doses de cerveja, entre intensas tragadas de cigarro e em joviais companhias. No ginásio salesiano, o padre José Ivan, professor de Religião e ocupante do cargo de Conselheiro, pretendeu afrontar a postura tradicional da escola. Depois de alguns movimentos de vanguarda, vigiados por olhares enviesados de seus conservadores pares, veio a proposta crucial: a missa jovem. Propunha seu idealizador a substituição, na celebração das missas, de todo o ritual em latim pela versão em língua portuguesa e de todos os cânticos tradicionais por músicas do cancioneiro popular, cujo carro-chefe era Pra não dizer que não falei das flores (Geraldo Vandré), considerada o hino de repúdio à intervenção militar que se instalara na Nação desde abril de 1964. Padre Paixão, professor de Português e Francês, à época também lecionando no colégio das salesianas, liderou o forte grupo dos contestadores. E a disputa se tornou ferrenha.

Em nossas produções textuais, nós, os aprendizes, éramos instados a nos pronunciar a respeito. Os apoiadores e contestadores não conseguiram despertar em mim o menor interesse pela refrega. Na verdade, eu entendia aceitável qualquer das práticas postas em disputa. Então, produzi duas redações que, embora contraditórias entre si, refletiam um conjunto de razões, plenamente defensáveis, que justificavam o meu apoio sincero a cada um dos lados em litígio. Uma, a favor, para a disciplina Religião, do padre José Ivan; outra, em desfavor, para a disciplina Português, do padre Paixão. Obtive o conceito máximo – dez, nota dez! – em ambas.

Agora, aqui, sentados nos primeiros degraus da escadaria que levava ao pátio frontal da igreja dos salesianos, recostados no vigoroso portão de ferro trancado a cadeado, na metade do acentuado aclive da avenida Dom Bosco, defronte a uma sequência de construções reveladoras de um estilo de época, eu vos digo, em verdade, que num domingo à noite, quando já nos preparávamos para o devido recolhimento, sou abordado pela irmã mais velha de minha jovem musa e atual parceira. Na condição de emissária dela, veio até mim em seu socorro, ela que teria de entregar, logo no primeiro horário da manhã seguinte, um texto dissertativo/opinativo sobre a proposta da “missa jovem”, como atividade da disciplina Português, do contestador padre Paixão.

– Você já deve ter feito redações sobre esse tema, não? – Indagou-me a interessante jovem de castanhos cabelos encaracolados e óculos de correção de miopia.

– Sim. Tanto a favor quanto contra. – Respondi.

– Pois, então, empreste-me uma delas. – Propôs-me.

– Com prazer. Agora, não pode ser a “a favor”, porque o padre Paixão conhece-a muito bem, ele que até elogiou a forma como conduzi a linha argumentativa, persuasiva. Tem de ser a outra. – Argumentei.

– Tudo bem. O importante é que ela não fique com zero na atividade.

Ela também obteve a nota máxima. Mas não se livrou da observação: “Garota, assim você se revela a ovelha negra da turma”.

Por razões desconhecidas, o projeto da “missa jovem” minguou tanto que acabou esquecido num desses insignificantes escaninhos da vida. Embora, hoje, as missas acompanhem ritual que àquela época alguém teve coragem de formalmente propor.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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