Acho que devia ter uns 12 ou 13 anos de idade quando comecei a me interessar por música com mais afinco. Nessa época, meu hobby e grande paixão era desenhar – fui até aluno do SENAC no curso de Desenho Artístico. Enchia pastas e pastas com meus rascunhos, protótipos de histórias em quadrinhos, naturezas-mortas e até alguns nus femininos (sim, os hormônios da época afloravam). Mas, ao mesmo tempo, um outro objeto já me roubava a atenção: havia ganho um violão e começava nos primeiros acordes, começando a flertar também com o rock, o heavy metal e todos os estilos fortes que desenham a trilha sonora de um adolescente que se preze – claro, hormônios borbulhando em fúria!
Era época da ascensão do CD, do microsystem e da chamada “era digital” no comecinho dos anos 90. Aproveitávamos tudo com grande novidade, enchendo os olhos e esvaziando as carteiras com tudo que o acesso à tecnologia trazia de bom. O compact disc já era artigo de luxo, tal qual era o LP nas décadas anteriores. Tínhamos pouca ou nenhuma internet, então a TV e o jornal ainda eram a grande fonte de informação. A fita K7 ainda era útil, pois era com ela que conseguíamos copiar materiais e compartilhar com amigos – um prelúdio para o que viria a ser o download de música no formato MP3 nas décadas seguintes. Popularizavam-se as revistas de CD-ROMs com uma infinidade de aplicativos, programas, jogos e traquitanas mil do mundo virtual. E, sim, íamos às lojas de discos com muito mais frequência: foi por meio da saudosa Tok Discos do Shopping Iguatemi que ainda lembro de ter ganho ou comprado meus primeiros disquinhos laser. Eram tempos de Mamonas Assassinas estourando nos risos e nos domingos da TV (infelizmente não fui ao único show que fizeram aqui no estádio Castelão); tempos de Double You arrebentando seu dance nas rádios; tempo das enormes revistas Jovem Pan com alguma musa da época de biquini na capa (ah, hormônios!) e sempre com um CD de brinde repleto dos sucessos radiofônicos da época.
Ainda conhecia muito pouco sobre música de quaisquer estilos, mas começava a me diferenciar dos roqueiros inveterados/bitolados da escola por buscar justamente outras fontes, outras referências de gênero, harmonia e composição. E meu lar teve uma grande participação nesse momento: aqui na sala tínhamos um grande móvel de madeira que comportava uma torre de CDs. Como sempre gostei de folhear os encartes, algumas vezes ficava “explorando” o local e olhando os discos que meus pais compravam. Descobria os artistas com curiosidade e uma certa estranheza. Nem sempre os punha para ouvir no aparelho, mas a pesquisa já era, de todo, positiva. Aqui em casa meu pai sempre ouviu bastante Roupa Nova, Os Pholhas, The Fevers e outros grandes grupos que reinavam nos bailes e programas de auditório desde a época em que eu existia apenas nos pensamentos e projetos de vida da Dona Sonia e do Seu Samuel. Minha mãe, por sua vez, sempre gostou de Leila Pinheiro, Ivan Lins, Emílio Santiago e outros titãs da MPB. Talvez eles não saibam, mas esse pequeno caldeirão de preferências foi essencial para a minha curiosidade e formação de um vocabulário musical.
Foi numa dessas explorações nos CDs do móvel da sala que encontrei um “Meu Mundo e Tudo Mais – Ao Vivo, Volume 2” de um tal Guilherme Arantes. Àquela altura da vida, acho que já conhecia algum sucesso dele como “Planeta Água” (que meu pai também curtia ouvir), apesar de não lembrar bem. Quando coloquei o tal álbum pra tocar, me surpreendi logo de cara na primeira faixa: “Loucas Horas”. Um rock bem puxado no piano, acordes fortes, guitarra e até saxofone davam a cara de uma atmosfera da música pop brasileira que, até então, me era inédita. Também não entendia muito de poética, métricas ou mesmo qualquer coisa de Literatura. Mas via ali, naquelas letras, uma qualidade excepcional, sensível, e isso se notava facilmente.
Quando comecei a conhecer mais o trabalho do Guilherme e sua história, fui notando o peso que aquele artista tinha na música nacional. Filho de uma família paulistana de classe média-alta, era estudante de Arquitetura. Porém, a boa posição social não o impediu de querer criar música que o aproximasse das massas, dos programas de auditório como o Chacrinha e tantos outros. Aprendeu muito bem o caminho de composição para hits inesquecíveis que entravam nas trilhas sonoras de novelas globais graças à sua estreita amizade com Guto Graça Mello – à época, diretor musical da Rede Globo. Essa relação surgiu após o diretor produzir a canção “Meu Mundo e Nada Mais”, incluida na trilha sonora da novela “Anjo Mau”, de 1976:
“Meu Mundo e Nada Mais” marcou o início da parceria de Guilherme Arantes com Guto Graça Mello. A partir dali, o compositor seria um dos maiores fornecedores de músicas para a TV Globo. Fez outras 23 canções que foram parar em novelas, como “Amanhã” (Dancin’ days, 1978), “Deixa chover” (Baila comigo, 1981) e “Um dia, um adeus” (Mandala, 1987). (BARCINSKI, 2014, p. 71)
O Brasil conheceria, ali, um artista completo que marcaria época e definiria um ousado e fértil gênero de pop para a música brasileira. O compositor fez parte de uma feliz “década perdida” que compreendeu o período a partir de 1976 até a primeira metade dos anos 80, quando tantos outros grupos e artistas geniais explodiram num sucesso meteórico – porém, muitos acabaram por se apagar logo em seguida. Sua obra surgia após a geração do começo dos anos 1970 ter acompanhado as revoluções de Secos & Molhados, Raul Seixas e até dos falsos gringos*. Antes da carreira solo, Guilherme tocava e cantava na Moto Perpétuo, uma banda de rock progressivo que fez pouco sucesso em seu tempo. Foi nela que ele pôde carimbar seu estilo de tocar, chamado popularmente de “piano forte”, e que bebia na fonte de artistas como Elton John e a banda Genesis. Seu talento como compositor e intérprete rapidamente se espalhou entre os pequenos círculos da patotinha dos artistas nacionais. Conta-se sobre um determinado episódio, em 1987, quando alguns artistas se reuniram na casa de Chico Buarque. Guilherme era esperado entre eles, e compareceu. Mas o que ele não esperava era receber um grande elogio de, nada mais nada menos, que o maestro Tom Jobim. Disse ele: “Você é um compositor excelente. As suas canções têm harmonias bem-feitas. Várias vezes eu tive inveja de você como compositor” (idem, p. 73). O próprio Guilherme conta que saiu chorando de lá, tamanha foi a honra e emoção de ser elogiado pelo Tom.
Outro fato curioso foi seu breve namoro com Elis Regina. Os dois se relacionaram após a diva da MPB ter gravado uma música de Guilherme, “Aprendendo a Jogar”. Na verdade, o romance durou apenas quatro meses, pois “a cantora queria que ele fosse seu diretor musical e ficou decepcionada quando Guilherme recusou”. (idem, p. 72)
Mas talvez uma das histórias que mais marquem sua carreira foi o Festival MPB Shell, em 1981**. Guilherme foi finalista com a canção “Planeta Água” cantada a plenos pulmões pela plateia. Sua vitória era quase certa, mas perdeu para Lucinha Lins e sua insossa “Purpurina”. Guilherme pode não ter ganho o prêmio em dinheiro, mas foi aclamado pelo auditório inteiro – que inclusive vaiou quando o resultado da competição foi anunciado. Outros comentam até hoje que o resultado foi meio conspiratório, pois tratava-se de uma canção que, apesar de bela, era uma velada crítica ambiental que estava sendo cantada num festival cuja dona era uma poderosa petrolífera. Fica o mistério no ar: canção certa na hora errada?
Para relembrar essa época gostosa, quando música tinha letra, harmonias bem trabalhadas, melodias belíssimas e quando os simpáticos “ô-ô-ôoos” ainda passavam longe das separações silábicas ridículas da atualidade (vide os tchê-tchê-rê-rê-tchê-tchê de hoje), recomendo alguns imperdíveis álbuns de sua discografia. E adivinha onde dá pra achar? No nosso amigo Spotify! Vale a audição dos excelentes “Guilherme Arantes” (disco de estreia – 1976), os dois volumes do ao vivo “Meu Mundo e Tudo Mais” (1990), os excelentes “Crescente” (1992), “Castelos” (1993) e até seu mais recente trabalho de inéditas “Condição Humana – Sobre o Tempo” (2013). No site do cantor, você também pode ouvir praticamente toda a sua discografia gratuitamente online: acesse guilhermearantes.com.br e se encante com o trabalho deste que ainda deveria ser o grande compositor pop brasileiro mais respeitado e reconhecido pela nossa (injusta) mídia.
Me pergunto como tantos talentos assim foram meio que esquecidos no tempo. É certo que muitos fatores sociais e, principalmente, mercadológicos mudaram por inteiro as formas de se consumir música no Brasil. Mas como canções tão boas – com letras bem escritas, poéticas, inspiradas e melodias marcantes – realmente são esquecidas assim? Fica aberto um debate interessante sobre isso. Hoje, Guilherme ainda faz alguns bons shows em centros culturais, SESCs e algumas casas de show – mas nada comparado às gigantescas plateias dos anos 1980. O cantor ainda trabalha bastante hoje em seu próprio estúdio de gravação e produção chamado Coaxo do Sapo, que fica no litoral da Bahia – onde ele também vive e ainda cuida do Instituto Planeta Água, sua ONG dedicada à preservação ambiental.
Poderia escrever muito mais aqui sobre a carreira do Guilherme, mas vou deixar que você, leitor, descubra (ou relembre) a valiosíssima obra deste artista que com certeza os brasileiros guardam com carinho – e na ponta da língua de canções deliciosas como “Cheia de Charme”, “Pedacinhos” ou “Lindo Balão Azul”.
Sorte a minha de ter instigado a própria curiosidade na torre de CDs lá de casa: isso ajudou a conhecer não só o Guilherme, mas uma série de outros artistas e álbuns incríveis. Também me ajudou a me tornar um ávido “fuçador” de prateleiras em lojas de CDs, hábito que cultivo até hoje e que me trouxe uma coleção que conta, atualmente, com quase 400 discos em casa. Mas isso é um assunto para um próximo texto!
Descubram as grandes oportunidades nas prateleiras – nem que sejam as virtuais. Se tem algo que aprendi é que a música sempre encontra um jeito inesperado de chegar até os compassos da sua vida. E preenchê-los com notas estonteantes, promissoras.
Boa audição a todos e até a próxima!
*Os chamados “falsos gringos” fizeram parte de uma jogada do mercado fonográfico brasileiro. No começo dos anos 1970, as vendas da música nacional não iam bem e os consumidores só queriam saber de artistas internacionais. Como as novidades do exterior demoravam a chegar, o mercado teve a inusitada ideia de lançar cantores brasileiros com nomes gringos e cantando em inglês. As vendas decolaram. Um dos mais famosos até chegou a adotar dois nomes: Uncle Jack e Mark Davis. Este, na verdade, se tratava do nosso querido Fábio Jr.
**Assista uma matéria do programa Mais Você com um trecho da arrepiante participação do Guilherme no Festival Shell de 1981 em https://vimeo.com/115838660
Referências:
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
Sérgio Costa
Obrigado pelo comentário, Frodo! Realmente o Guilherme ainda é um artista cheio de cartas na manga. Espero me surpreender logo em breve também com este próximo disco. Fique ligado aqui na coluna que tem texto novo numa média de quinze em quinze dias. Obrigado e um abraco!
Frodo Oliveira
Rapaz, excelente texto, Sérgio. Descobri o Guilherme ainda no início dos 80’s, justamente no festival MPB 81, aos 12 anos. Como também sempre tive espírito investigativo, fui descobrindo as pérolas mais antigas dele, que eu já cantarolava mas não sabia de quem eram (Meu mundo e nada mais, Descer a serra, Deixa Chover, Êxtase) e passei a companhar a carreira dele a partir daí. Hoje, aos 47, assisto com certo orgulho a “redescoberta” de todo talento e potencial do Guilherme, coisa que eu já conheço há décadas. E já aguardo ansioso o próximo CD, que, segundo o artista, vem bem “progressivão”. Vida longa ao talento e à humildade do Guilherme Arantes, e parabéns pela matéria.
Francisco Saldanha
Ótimo” histórico- emotivo” de sua relação com a música e com a arte melódica de Guilherme Arantes . Arantes tbm foi um cantor que sempre esteve presente em minha infância. Uma espécie de referência involuntária. Somente na idade adulta pude reconhecer e valorizar a música desse Artista.
Sérgio Costa
Certeza, amigo Wellington! Valeu pelo comentário, e fica de olho que sempre tem texto novo. Abracao!!