A arte de escrever, por Francisco Luciano Moreira Gonçalves (Xykolu)

“Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever,

por inferior a mim mesmo que nisso seja?”.

Fernando Pessoa, Livro do desassossego.

São Paulo: Companhia das Letras, 2015; pág.170.

Antes, em sonhos – silentes e fluidos como água de nascente; edulcorantes e frugais como favos de mel –, sinto, com a alma fértil de encantamentos, a esplendorosa invasão de meus pré-textos, em fase embrionária.

Ao acordar-me, eu os recolho e os acolho e os abraço. E, como se fossem filhos recém-nascidos, indóceis e agitados, mas carentes de cuidados, embalo-os enternecido.

Então, eu os crio. E, à medida que ganham alma, eu os recrio, adaptando-os ao meio em que vão adolescer e, adquirindo massa corpórea, amadurecer.

E, como o pastor apascenta as suas ovelhas, o jardineiro rega as suas plantas, a mãe agasalha e amamenta o seu filho, o poeta saboreia o prenúncio da madrugada ou o raiar do alvorecer ou o crepúsculo do entardecer ou o pratear da lua e o tremeluzir das estrelas, para, só após esse extasiante rito, burilar o seu verso, lapidar a sua rima, clivar a sua métrica sob o plano da melodia, eu cuido zelosamente dos meus já quase-textos.

Após esse estágio, em que se misturam magia e apreensão, prazer e ansiedade, dá-se o momento crucial. Num lapso temporal, eles criam asas, arrebentam o casulo e adejam intrépidos mundo afora – há quem os recolha, também há quem os ignore e até os despreze. [Nem o Filho do Homem, mesmo com suas divinais parábolas, alegorias da plena verdade, conseguiu agradar a todos; portanto, não me crucifico: não sou o bom Dimas, muito menos o mau Gestas]. Já não mais me pertencem… mas eu não os esqueço nem os abandono. O vínculo não se rompe, jamais. São partes viscerais de mim. E, na verdade, com eles sempre estarei, onde quer que estejam. Assim como com as filhas que a vida me honrou em participar do sublime ato de lhes dar vida.

Afinal, são elas e eles – as minhas filhas e os meus textos – o que de melhor fui e sou capaz de re-produzir.

Eu tenho a consciência da gravidade de expô-los ao mundo, da responsabilidade de lhes dar uma paternidade, da necessidade de lhes oferecer o ponto seguro para alguma aterrissagem improvável, caso se imponha algum estratégico retorno.

Permitam-me, adoráveis leitoras(es), revisitar, agora, Antoine de Saint-Exupèry*: “É a qualidade do carpinteiro que se planta diante do seu pedaço de madeira e o palpa e o mede, e, longe de tratá-lo às pressas, reúne todas as suas virtudes para trabalhá-lo”. E essa é uma qualidade que não tem nome, pois, indo muito além das limitações de quaisquer palavras, não se deixa apreender por nenhuma delas.

E é na hora de carpintaria que, para iluminar meus sôfregos atos na busca incansável do melhor entalhe, do mais perfeito encaixe, sempre apelo para a luz que emana de faróis acesos, no alto da torre dos saberes, por mestres das mais admiráveis escrituras, e, para amainar essa sofreguidão que, não raras vezes, me atormenta na luta pela perfeição, recorro a uma frase de Rachel de Queiroz**, a qual reputo exemplar para o ofício da palavra escrita: “Quanto trabalho, quanta ourivesaria, quanto lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, ficar longamente com aquela palavra na ponta dos dedos – e a palavra não cabe no engaste e terá que ser substituída – ou alterada, ou reinventada; se lhe alterando o sentido primitivo, dando-lhe o emprego novo e inesperado, quem sabe?”.

Esclareço, por dever de ofício, que não me inspiram tão-somente os deuses gregos Hypnos, o do sono, e Morpheu, o dos sonhos, e Thanatos, o da morte. Também recepciono geniais intervenções da volúpia e do deleite indomáveis de Baco, cujos generosos cálices de vinho das melhores uvas reaquecem e inebriam o já esmorecido corpo que, então, freme embevecido ante o flutuar da alma, a projetar imagens impregnadas de sentimentos, de embelezamentos, de poesia. De vida, enfim.

Aí, amáveis leitoras(es), ancoro minha pobre nau, quase desnorteada pela não-sobriedade, na sensibilidade poética de Fernando Pessoa***: “Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.”

E escrever é, para mim, a arte dos encantos.

* Em Terra dos homens. São Paulo: Círculo do Livro, 1991; pág. 35.

** No prefácio de Dizem que os cães veem coisas, de Moreira Campos – 3ª ed. – São Paulo: Maltese, 1995.

*** Em Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2015; pág. 259.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

3 comentários

  1. Francisco Luciano Gonçalves Moreira

    Dou-me à ousadia de tomar de empréstimo três excertos do BREVE MANUAL DE ESTILO E ROMANCE (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003), do mineiro Autran Dourado, pelo que eles podem acrescentar às minhas considerações elementares sobre A ARTE DE ESCREVER:
    1. “Em cinco horas de trabalho produzo em média duas páginas. No final do livro volto a elas: corto, corrijo, acrescento; volto a escrever. É trabalhoso mas é bom, você fica sabendo que escritor é aquele sujeito que escreve com dificuldade; quem escreve com facilidade é orador.” [pág. 20].
    2. “Sem aplicação e disciplina não se faz nada (…). Dizem que os gênios não têm disciplina, mas os gênios não são modelos para ninguém. Eles criam a sua própria disciplina, que só serve para eles.” [pág. 73].
    3. “Literatura é linguagem e linguagem escrita só se aprende mergulhando na língua em que nascemos, em que escrevemos.” [idem].
    E ouso mais ainda, ao pinçar esta pérola, entre tantas outras de mesmo jaez, lapidada pelo argentino Ernesto Sabato, em O ESCRITOR E SEUS FANTASMAS (São Paulo: Companhia das Letras, 2003):
    “O homem concreto não se propõe somente – nem sequer – comunicar verdades abstratas, mas sim sentimentos e emoções, tentando agir sobre o ânimo dos outros, incitando-os à simpatia ou ao ódio, à ação ou à contemplação. Para tanto, utiliza uma linguagem absurda, mas eficaz, contraditória, mas poderosa.” [pág. 49].
    Com essas citações, pretendo reverenciar todos aqueles que se dedicam fervorosamente à arte da produção textual.

  2. Janete Barros

    “E escrever é, para mim, a arte dos encantos.” E ler/escrever é uma simbiose única, inigualável. E para poucos… ´mestre na arte da escrita, escultor das palavras e grandioso pai! E o que mais o coração couber. Parabéns!

  3. Francisco Luciano Gonçalves Moreira

    ERRATA:
    Onde se lê “Exupèry”, leia-se “Exupéry”. [Pronúncia do “é” com som fechado, como se fosse o “ê” em português-brasileiro].