AMULUQUÉ
“O certo é que, hoje, mais de meio século depois, sinto o peito arder, o coração sangrar e lágrimas umedecerem os meus olhos. Saudade.”
(Xykolu, em Tristeza não tem fim / Felicidade, sim; My book of the face – O meu livro do atrevimento, pág. 102; 18.2.2014).
– Mãe, eu quelo amuluqué.
O pedido saiu como um sussurro. A jovem mãe, se ouviu, fez de conta que não. Pôs bolsa e sacola sobre uma pequena mesa de madeira recostada na parede e, calmamente, acomodou-se na cadeira sem braços e com assento de palhinha que lhe fora oferecida pela dona da casa.
Com os bracinhos apoiados na coxa direita da sempre muito paciente mãe, o garoto, com o olhar voltado para o rosto dela, repetiu o pedido com um pouco mais de ênfase.
– Mãe, eu quelo amuluqué!
– Meu filho, você sabe que não pode me pedir isso. Por favor!
– Mas mãe, eu quelo…
– Minha amiga querida e minha professora predileta, que bons ventos a trazem até a minha casa! – Com essa saudação, que se repetia em todas as vezes que a visita acontecia, a dona da casa, ex-vizinha e ex-locadora (a jovem mãe já houvera morado de aluguel na casa ao lado, por uma temporada não muito longa, mas suficiente a que se estabelecesse entre elas uma grande amizade) iniciava uma conversa que, se tudo transcorresse na normalidade, se arrastaria por algumas horas.
– Mãe! Mãe-ê! – A vozinha veio carregada de súplica.
– Meu filho, por favor, comporte-se! Você não está em casa…
– Espere aí, amiga! Ele está em casa, sim! Eu não consegui ainda entender o que ele tanto quer. Mas, se você me disser o que é esse… esse… isso que ele está pedindo, eu terei o imenso prazer de atender o seu filho. Você sabe disso, não é amiga?
– Desculpe-me, amiga. Eu sei de sua generosidade. Acontece que nem eu mesma sei o que é “amuluqué”…
– Sabe, mãe. A senhola sabe… – O garoto voltou a sussurrar, agora de cabeça baixa e olhar fixo no chão, como se pretendesse demonstrar a noção do risco que corria ao afirmar isso.
Na cabeceira oposta de uma enorme mesa de madeira rústica, ladeada de bancos de mesmo fabrico, o dono da casa jantava em silêncio. O cardápio? Ora, baião-de-dois e peixe frito. Um prato que exalava um cheiro de encher d’água a boca de qualquer um.
As duas senhoras – uma com idade pra ser mãe da outra – tentavam entabular uma conversinha que fosse. Debalde. O garoto e o seu “amuluqué” iam aos poucos esgotando a paciência de ambas.
– Minha amiga, o que é amuluqué?! Me diga, por favor!
– Amiga, eu não sei…
– Meu filho, o que é amuluqué?!
– Amuluqué é… é… é amuluqué.
– Mostre pra titia… Tem alguma coisa aqui que seja isso? Aponte…
– Não!!! – A resposta saiu num tom que afastava qualquer possibilidade de insistência. A educação que recebia em casa manifestou-se numa ação de puro reflexo e a voz do garoto ecoou no ambiente.
Meio sem jeito, a jovem mãe interrompeu a visita, pegou seus pertences de volta, pôs o filho no braço, despediu-se da amiga e retomou o caminho de volta pra casa.
[…]
Passados alguns dias, a professora predileta faz nova visita à amiga, cuja curiosidade não a deixou esperar muito tempo para retomar o assunto pendente desde o último encontro:
– Amiga, tenho certeza de que você sabia e sabe o que é “amuluqué”…
– Mil perdões, amiga! Eu sei, sim. Você se lembra do jantar do seu marido naquele dia?
– Como posso esquecer se é o prato preferido dele. Se pudesse, jantava isso todo santo dia. Baião-de-dois e peixe frito.
– Pois bem, amuluqué é baião-de-dois!
– Meu Deus! E por que você não me disse, mulher?!
– Porque, em casa, ele não admite comer “isso”, como ele mesmo diz. Apesar de ser o prato também preferido do pai. E isso nos tem causado alguns pequenos dissabores. A amiga entende, né?!
– É. Entendo, sim.
Post scriptum: Há 52 anos, às 7 horas de uma manhã chuvosa de segunda-feira, no quarto de dormir dos meus pais, findava-se um processo doloroso que se iniciara no meio da tarde do dia anterior, o qual me fez sofrer a dor mais profunda que um ser humano pode suportar: a dor da orfandade precoce.
Hoje, com a alma em lágrimas, eu me lembrei do “amuluqué”…
[Xykolu, em My book of the face – O meu livro do atrevimento, págs. 242-243; 18.2.2015].
E do prazer fez-se a espera;
Da espera, a graça do nascer;
E do nascer, o sangramento;
E do sangrar, fez-se o sofrer.
(Xykolu, em Ódio à morte; My book of the face 2 – O meu livro do atrevimento, pág. 210; 18.2.2016).
E a lágrima quente, veemente e visceral,
que emana da alma em impassível languidez
e desborda da pálpebra em contínua flacidez,
enquanto insensivelmente escoa, demorada,
queima e faz arder, agora, a face enrugada,
por indeléveis marcas da inexorabilidade temporal.
Curvo-me, então, desnudo de quaisquer artificialismos,
à sábia inspiração do genial vate lusitano a asseverar: “Considero a vida uma estalagem onde tenho de me demorar
até que chegue a diligência do abismo”*.
E nada mais tenho a dizer, emudeço, portanto,
enquanto a alma antes irrequieta sangra em esbatimentos
e a imorredoura saudade insiste em apaziguamentos:
Não pretenda ser um semideus, amiúde!
Seja simplesmente um homem submisso à sua finitude!
E a vida vai cotidianamente perdendo os seus encantos…
[*Fernando Pessoa, em Livro do desassossego, pág. 42].
(Xykolu, um eterno órfão; 18.2.2017).