Em dezembro tem início para a cultura cristã o tempo do advento no qual os fiéis cristãos tratam de prepararem-se para a celebração do natal do seu fundador, Jesus de Nazaré. Entre os textos escolhidos para a reflexão durante este período destacam-se os do evangelista Lucas nos quais o autor procura dar uma interpretação aos sinais do seu tempo, caótico, após a destruição de Jerusalém, buscando encontrar naqueles acontecimentos sinais de libertação para o povo cristão.
Na última semana de novembro, a sociedade brasileira foi surpreendida com a prisão de um senador da República, em pleno exercício de seu mandato, após a segunda turma do Supremo Tribunal Federal decidir sobre sua prisão preventiva alegando que, na escuta de um áudio da conversa do senador, gravado pelo filho de um delator premiado, haver flagrante de pertença a uma organização criminosa, interpretação sobre a qual paira grande dúvida por parte de diversos juristas brasileiros. Em todo caso, configura-se como mais um ingrediente que se soma ao processo de investigação da corrução presente na relação promíscua entre setores do empresariado brasileiro com agentes públicos.
A exclusão é característica das sociedades de estamentos, fundadas em diferenciações rígidas, não permeadas por mecanismos de mobilidade ou ascensão social. Ou seja, sociedades estruturadas em função do reconhecimento explícito da desigualdade “natural” das diferentes categorias sociais. No Brasil estamental, por exemplo, no século XVIII, um nobre aristocrata, que estivesse em pobreza, recebia uma esmola várias vezes o valor da esmola de um branco pobre, mas sem nobreza, como atesta o sociólogo José de Souza Martins. Isso implicava que somente a alguns (os nobres) era reconhecido viver a pobreza com dignidade, enquanto aos outros pobres de nascimento e de sangue não se deferia tal reconhecimento. Outro exemplo histórico, pessoas que faziam trabalhos manuais (tipo, torneiro mecânico) estavam impedidas de ocupar cargos públicos, nas câmaras estamentalmente interditadas, devido a sua condição social.
Seguindo ainda a mesma reflexão, em sua obra Os Donos do Poder, o pensador brasileiro Raymundo Faoro coloca em relevo outra categoria que pode trazer um pouco de luz aos fatos que estamos presenciando no cenário político nacional, para tentar entende-los melhor. Trata-se do patrimonialismo, ou seja, a privatização dos bens públicos. Assim, o patrimonialismo e o estamento, como estruturas de manutenção do poder, estão no alicerce da nossa formação como nação brasileira. No patrimonialismo brasileiro, nas suas relações de poder, o soberano e o súdito não se sentem vinculados à noção de relações contratuais que ditam limites ao príncipe: este se sobrepõe ao cidadão, consequentemente, à sociedade civil. Historicamente no Brasil ocorria que a camada economicamente dominante para dispor de poderes políticos e administrativos associava-se ao convívio fraternal e cordial com o rei e com ele estabeleciam negociações e entendimentos. Por sua vez o estamento político constitui sempre uma comunidade: os seus membros pensam e agem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado, “qualificado” para o exercício do poder. Esta situação estamental é a marca dos indivíduos que aspiram aos privilégios do grupo e ao status que irão desfrutar sobre toda a sociedade. O estamento é um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social, esforça-se pela conquista de vantagens materiais e espirituais exclusivas. O fechamento dessas comunidades leva-os à apropriação de oportunidades econômicas que se desembocam nos monopólios de atividades lucrativas e de cargos públicos.
Contudo, essas relações tradicionais são ameaçadas com o desenvolvimento do Mercado, uma vez que nele as sociedades tendem para um padrão de relações sociais de tipo contratual e igualitário. A igualdade jurídica é uma característica essencial destas sociedades do contrato. A democracia moderna é, portanto, o reconhecimento que a humanidade faz de si mesma, percebendo que pessoas e coletividades são capazes de ser agentes de suas histórias, como sujeitos livres e iguais, tendo o direito de agir na qualidade de criadores de suas vidas individual e coletiva. Um dos eixos centrais da democracia é a soberania popular, a afirmação de que a ordem política é produzida pela ação humana. O poder emana do povo e não do rei. É um modo de organização da sociedade cuja economia de mercado é a forma econômica, a secularização é sua expressão cultural e sua organização política sucede pela existência de um conjunto de regras fundamentais que estabelece quem está autorizado a tomar decisões coletivas e quais procedimentos deverão ser adotados. As regras são procedimentos, meios a serviço dos fins a serem alcançados, devendo impedir ao mesmo tempo o arbítrio e a obscuridade dos atos públicos, buscando responder às demandas da maioria para garantir a participação do maior número de pessoas na vida pública.
Os fatos da semana passada estão a demonstrar que a sociedade brasileira está vivenciando uma mutação de uma ordem estamental para uma ordem democrática. Apesar de estarmos apenas no início desse processo, ainda bastante prejudicado pelo monopólio midiático e pela falta de uma investigação honesta de outros fatos amplamente denunciados, como o Mensalão Tucano e sua Privataria. Não existe liberdade sem lutas pela libertação. É preciso continuar a luta para libertar a coisa pública brasileira das mãos daqueles que secularmente dela se locupletaram e assim atingirmos uma democracia institucionalmente madura, capaz de responder de forma justa aos anseios e necessidades dos cidadãos e cidadãs soberanos.
Raoni CUNHA ARAGÃO de Albuquerque
Estamento, patrimonialismo , pré-condições à corrosiva implosão da corrupção!
Até quando?
Até tod@s descobrirem que o dar
É o melhor verbo a se amar . . .