Acredite se quiser (continuação), por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

ACREDITE SE QUISER

(Continuação)

Miguel! Meu bom Miguel! Custa-me crer que seja você ligando pra mim.

(…)

O porquê da perplexidade? Ora, amigo, a regra é clara: o Poder jamais se curvará ao comum. Ademais, devo lembrar que, desde os imorredouros tempos da nossa convivência estudantil na Arcadas, no Largo de São Francisco, sempre foi minha a iniciativa do contato, em qualquer contexto.

(…)

Lógico! Quem sempre se achou no direito de quebrar o silêncio? Eu. Eu e as minhas necessidades de aconselhamentos. Muito raramente, você e as suas.

(…)

Pois é, Miguel. Quando você assumiu o mais alto posto republicano, a liturgia do cargo dificultou as nossas interlocuções. Agora, surpreendeu-me… Como?! Você se lembrar de mim… em meio ao processo de escolha de quem será ungido para recompor a Suprema Corte. Afinal, isso é uma consulta ou um convite?

(…)

E o Gilmar, o que acha disso? Dele, certamente mereço apenas o escárnio. Convite não aceito.

(…)

Isso mesmo! E de forma irrevogável. Sinto-me honrado, obviamente. Mas não posso aceitar.

(…)

Sim, sem falsa modéstia, sim. A honestidade, a responsabilidade, o profissionalismo e a dedicação com que sempre pautei a minha atuação como agente público, numa trajetória profícua de algumas décadas, sustentam, sim, a ilibada reputação que de mim seria exigida na eventual candidatura a tão expressivo cargo. O saber jurídico que consegui amealhar como arauto convicto da Justiça, como defensor incansável do Direito, do bom e velho Direito, não me dá a notoriedade incontestável nem o alto grau de respeitabilidade no mundo jurídico, qualidades encontradiças em um Zavascki, uma Cármen, um Celso, uma Weber, embora, convenhamos, nada deva, no particular, a um Dias, por exemplo. A simplicidade, a discrição, o tecnicismo e o perfeccionismo são marcas indeléveis de meu peculiar comportamento profissional. Mas há algo no meu perfil, caro Miguel, que severamente me desqualifica para tão grave mister, por ferir de morte a imparcialidade com que deve agir um aplicador da Lei: eu odeio a classe política… e você sabe disso. Eu costumo colocar os lídimos representantes do povo, todos eles, na base de todos os problemas, de todas as dificuldades por que ora passa o país que, não fora abençoado por Deus, nem a bela Natureza o salvaria. Dê-me o poder de julgá-los e eu já recorrerei ao pressuposto de que merecem, no mínimo, a supressão do cargo e o cerceamento da liberdade, em face da prática continuada de ilicitudes de matizes várias, que concorrem sempre para o enriquecimento pessoal, fruto de desvios de verbas públicas, de corrupção, de conluios, de conchavos. E assim, amigo, não me comportaria como um juiz, com a sobriedade e a imparcialidade de quem compete julgar, mas como o carrasco impiedoso, o flagelo da Justiça contra os salteadores do erário. Não, não posso, definitivamente, aceitar o que você tão corajosamente me propõe.

(…)

Miguel, por favor, entenda. Com uma indicação inconsequente, você correrá o sério risco de ver ampliar-se o rol de adjetivos insultuosos que já lhe impõem seus adversários.

(…)

Certo, certíssimo. Tudo bem. Saiamos, pois, do convite e passemos para a consulta. Antes, alguns conselhos. Mantenha a tranquilidade de quem sabe manejar as peças do tabuleiro e conhece as regras desse jogo de alta complexidade, e, para conter uma eventual onda que empurre seu governo para uma crise institucional, adote, na devida medida, o rigor exigido em eventos do gênero. Considere mais dois elementos fundamentais: a excelência e a longevidade do cargo. Não invista no seu atabalhoado ministro da Justiça; ele há demonstrado não merecer tão elevada unção. Evite os bons profissionais que conduzem a operação Lava Jato ou protagonizaram o impeachment, pra não dar aos críticos a possibilidade de qualificar a indicação como moeda de troca. Exclua todos os nomes que mantenham alguma afinidade com políticos, os indivíduos ou as agremiações, haja vista a probabilidade dissimulada de interesses escusos. No cenário atual, isso pode causar seriíssimas consequências.

(…)

Bem, o que eu faria se me dado fosse indicar. Sopesaria, criteriosamente, todas as qualificações dos candidatos em face da matriz de requisitos que o cargo impõe. Seria republicano ao extremo. O timoneiro capaz de bem conduzir o barco em águas tormentosas. Assumiria a responsabilidade pela condução do processo. Não delegaria competência. Seria democrata. Ouviria atenta e pacientemente os aliados, as lideranças, os assessores mais próximos. Seria estrategista. Escolheria uma mulher. Sim, isso mesmo, indicaria uma mulher. A Grace da AGU, por exemplo. Miguel, em questões desse jaez, evite ser mesoclítico. Assuma uma postura enclítica. Imponha-se. Cause estranheza na mesmice. Aja diferentemente. Há excelentes opções na magistratura, todas em condições de assumir plenamente o posto vago. Mire-se no exemplo de Cármen e Rosa. Ponha um pouco mais de graça num ambiente de tensão e de sisudez. Um pouco mais de sensibilidade no Olimpo dos semideuses togados. Torço pra que tudo caminhe pra normalidade. E muito obrigado por tudo.

E o Velhinho de Baturité, na conversa com seus coleguinhas da praça, demonstra estar convencido de que essa conversa não passou de um sonho, em meio ao reconfortante sono do alvorecer, embalado pela melodia dos pingos da chuva que insistiam em cair no telhado e escorrer pelas biqueiras da casa. E o clima, então, se fez ameno. Que bom!

Post Scriptum:

  1. O nome completo do atual presidente da República é Michel Miguel Elias Temer Lulia. De ascendência libanesa. Culto(a) leitor(a), você já sabia? Pois é. E o Google serve pra quê?!
  2. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
  3. Tudo o que o texto revela consiste em produto da imaginação do seu autor. Obra de ficção. Acredite se quiser.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.