Em sua sequência de abertura, “A Salvação” (2014) se apresenta objetivamente através de uma série de códigos que afirmam o cinema western, ou nosso faroeste, enquanto proposta. A estação, os cavalos, o trem, homens usando chapéus e coldres, mulheres com guarda sois e longos vestidos. E pelos olhos do realizador dinamarquês e membro do consagrado Dogma 95*, Kristian Levring, estamos diante de um autêntico filme de gênero.
Na estória, John Jensen (Mads Mikkelsen), um ex-soldado do exército dinamarquês migra para os Estados Unidos com sua família. Chegando lá, eles são vítimas de uma gangue de assassinos. Com sua mulher e filho mortos, John junta-se ao seu irmão Peter Jensen (Mikael Persbrandt) e entram numa sangrenta luta contra os demais facínoras daquele pedaço do Oeste americano.
O ano é 1870 e um ponto inicial que podemos destacar do longa é o plano de fundo literário que o reveste. A narração em off do contexto histórico nos traz isso e terá em uma de suas subtramas as primeiras descobertas das áreas petrolíferas norte americanas. Mas por sua estrutura clássica, o filme se concentra mesmo é no quanto a aridez de um cotidiano marcado pela violência e a opressão podem alterar o posicionamento do homem em seu meio.
É claro que Levring não faz isso através de diálogos expositivos ou longas digressões. Pelo contrário, usa os gatilhos difundidos por grandes mestres da cinematografia como Sergio Leone , Bernardo Bertolucci e Sam Peckinpah. O diretor dinamarquês se utiliza da ação para construir o enredo da sua estória. E por “ação”, entendamos uma construção narrativa que dispensa o diálogo excessivo e o resume naquilo o que for essencial à estrutura fílmica.
E aí desaguamos na vertente da forma do filme. Nisso, falamos do plano e de como ele enquadra a tônica do nosso olhar para o trabalho e deixa pistas para que igualmente possamos fazer nossa apreensão do seu sentido. Por ser um filme “de autor”, o longa possui como traço o uso de uma fotografia bastante estilizada. As cores fortes de algumas cenas nos trazem uma curiosa ideia de um cinema impressionista e que quase intencionalmente objetiva ser essa extensão do que a pintura sempre foi para a prática cinematográfica.
A forte correção de cor aplicada no quadro igualmente reforça essa estilização. Tal decisão estética é brilhante porque também aciona uma positiva variante entre uma pegada naturalista que o gênero western usualmente acessou e aquela vertente de caráter mais simbólico, que encontramos nas HQ`s e animações. É como vermos a escolha da direção de arte que soube estilizar no figurino dos personagens. Como não notarmos o sobretudo vermelho usado pelo facínora Delarue (Jeffrey Morgan) em meio aos tons “pasteis” da ambiência do Oeste americano?!
Mas “A Salvação” também nos aciona um olhar de grande enlevo em função de como Levring trabalhou a dramaturgia na condução do longa. Ele parte de um núcleo muito sólido formado pela tríade de Mikkelsen, Jeff Morgan e a exuberante Eva Green no papel da renegada Madelaine. O que nos mostra que a direção priorizou a formação de um elenco com expressivos atores que ao seu modo, somaram criando fortes camadas dramáticas no filme e contribuindo para a construção das suas variações tonais do drama inseridas no faroeste. Entramos, assim, na relevante questão dos níveis de profundidade desses personagens.
Em termos dramatúrgicos, a literatura nos ensina que há o personagem plano e o profundo. O primeiro pode ser lido como “aquele formado por apenas uma camada”. Ele é raso. Suas motivações, claras. Ele está nas comédias, por exemplo. Já o segundo, contém uma carga de complexidade que em alguns casos desafia a própria interpretação do espectador. E é nesse contexto que observamos um personagem como o do protagonista John.
Ao longo dos 93 minutos de projeção o que vemos é a transformação da personagem a partir do trabalho do ator cena a cena. Desse modo, Mikkelsen doa ao seu caractere o tom metamorfósico do homem que vai se embrutecendo com o mundo a partir das ações que o meio implica nele. E à medida que as sequências avançam, mais profundo esse personagem se torna. Logo, a potência interpretativa do grande ator se revela na maneira como consegue expressar distintos “modos de ser”, em função da trama que o filme coloca.
Entre técnica e conteúdo, forma e sentido, o quinto longa-metragem de Kristian Levring também pode ser tomado como uma homenagem aos westerns dos anos 1960 como “Por um Punhado de Dólares” (em sua estrutura enxuta); “Era uma Vez no Oeste” (pela câmera e estética bastante elaboradas) e “Meu Ódio será tua Herança” (em função da crueza do tema e seriedade no trato do roteiro). Uma miscelânea do que melhor o gênero ofereceu e tem oferecido na contemporaneidade. Os Oito Odiados (2015) de Quentin Tarantino, à propósito, é uma mostra disso.
*Idealizado em 1995 por Lars Von Trier, Thomas Vinterberg, Søren Kragh-Jacobsen e Kristian Levring, o Dogma 95 foi um movimento cinematográfico criado para a idealização de um cinema mais realista. Para esse grupo de realizadores dinamarqueses, trata-se de “um ato de resgate do cinema do modo como ele era feito antes da exploração industrial”. Apresenta uma série de restrições à técnica e versa sobre questões éticas com regras quanto o conteúdo dos filmes e seus realizadores.
FICHA TÉCNICA
Título Original: The Salvation
Tempo de Duração: 109 minutos
Ano de Lançamento (Dinamarca): 2014
Gênero: Drama, Faroeste
Direção: Kristian Levring