Nos versos de Olavo Bilac, poeta do parnasianismo, movimento literário que objetivou valorizar o cuidado formal do poema, em busca de palavras mais raras e rigidez das regras na composição poética, encontra-se uma chave de leitura para se compreender extratos da consciência nacional sobre o que venha a ser o mito fundador do Brasil, um país abençoado por Deus e bonito por natureza. Vejamos:
Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste.
Criança! Jamais verás país nenhum como este.
Olha que céu, que mar, que floresta!
A natureza aqui perpetua em festa
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Imita na grandeza a terra em que nasceste.
Para esse autor, bem como para diversos pensadores representantes da classe dominante brasileira, a riqueza do Brasil está não na diversidade e capacidade do seu povo de produzir riquezas, mas em sua beleza e grandeza territorial, na fertilidade de grandes plantações de cana-de-açúcar, cafezais, milho ou soja. Aqui, em se plantando tudo dá, já dizia Caminha: a força de trabalho que viabiliza tal produtividade, para essa classe dominante, é um insignificante detalhe.
Ainda nessa visão teórica, a nossa história foi construída sem violência. Somos uma nação cujo povo é pacífico, alegre, manso, ordeiro, conformado e sofredor. Essa representação nos condiciona a crer na unidade nacional de uma sociedade harmoniosa e pacífica, composta por uma minoria de ex-senhores da Casa Grande, detentora dos latifúndios brasileiros abençoados por Deus, e de uma grande maioria de ex-escravos das Senzalas e da população mestiça urbana, trabalhadores braçais e prestadores de serviço, abandonados à própria sorte com o advento da república. Toda pessoa ou movimento social que demonstre uma pauta reivindicatória por seus direitos de cidadania serão considerados inimigos da nação a serem combatidos ferrenhamente, independentemente da injustiça social a que estejam submetidos. Eis a ideologia nacional!
Para esses pensadores, o único sangue derramado foi o de um mártir, Joaquim José da Silva Xavier, que se entregou livre e serenamente à forca, passividade pela qual se tornou o escolhido dos governantes da primeira república como o herói nacional, em detrimento dos revolucionários Zumbi ou Caneca.
Neste 21 de abril de 2018 a história parece insistir em não mudar. Estamos vivenciando as tensões que envolvem, de um lado, a luta popular por um país democrático, com maior liderança e altivez na construção da nova ordem mundial em curso, promotor de iguais oportunidades para todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, redistribuidor da riqueza nacional produzida socialmente, garantidor dos direitos humanos consagrados pelos diversos documentos de organismos internacionais e pela Constituição. Do outro lado localizam-se aqueles que, por meio do Golpe de 2016, estão desconstruindo as conquistas internas e externas das políticas dos dois governos LULA (2003-2010) e Dilma (2011- 2014) por meio do desmonte do Estado brasileiro, com a imposição de contrarreformas redutoras de direitos sociais e uma política externa escancaradamente subserviente ao poder do capital estadunidense.
Neste sentido é importante registrar que o sistema-mundo está vivenciando a formação de um novo momento da globalização. A globalização, usando as palavras do geógrafo Milton Santos (Por uma outra globalização, Record, 2000), não é apenas a existência de um novo sistema tecnológico. Ela é também a emergência de um dito mercado global, uma espécie de mais-valia globalizada, responsável pelo essencial dos processos políticos, elevando a competitividade a um estado de guerra cujo objetivo é vencer a todo custo.
Três parâmetros requerem ser observados nesse jogo de poder: 1) a soberania dos estados-nação, 2) a democracia interna desses estados enquanto sistemas políticos internos, 3) a nova ordem global em andamento. Essas três realidades imbricam-se entre si numa disputa ferrenha de afirmação, com forte vantagem para a globalização.
Por um lado na formação da nova ordem global, os Estados Unidos com a chegada do governo Trump estão açodando a violência de sua ação econômica e militar internacional na tentativa de recuperar espaços perdidos para a China e para a Rússia, que continuam avançando em seus acordos econômicos na África, no Oriente e América Latina. O ataque terrorista dos EUA à Síria nada mais é do que uma vingança pelo fato de aquele país haver escolhido a Rússia como seu parceiro estratégico.
De outra parte, os estados-nação vivem uma corrida frenética para integrarem-se à nova globalização por meio de novos acordos econômicos com novas configurações que lhes permitam vantagens competitivas além daquelas oferecidas em organismos mais rígidos e complexos como a União Europeia, num tipo de globalização seletiva de ricos-com-ricos, abandonando os países pobres à própria sorte de hiper-explorados no sistema global.
Por último, as democracias internas como sistema de governo sofrem constantemente ameaças da nova ordem global uma vez que as reivindicações das populações por garantia de direitos vão na contramão dos interesses do capital financeiro mundial que veem nessas reivindicações um forte obstáculo aos seus lucros globais em função dos gastos que os orçamentos nacionais terão de dirigir aos programas sociais e aos investimentos estruturais, comprometendo o pagamentos dos juros financeiros aos bancos. A desestabilização das democracias, por meio de golpes não convencionais, para colocar nesses governos burocratas comprometidos com o sistema financeiro internacional é uma estratégia dessa nova globalização liderada pelos EUA. Assim, enquanto na Síria as bombas são tradicionais, aqui no Brasil a estratégia adotada são bombas semióticas de destruição de partidos políticos e de biografias de personagens-símbolos nacionais. A imediata libertação de LULA neste momento é um imperativo para retomarmos o caminho de nosso longo amanhecer. Mais que teimosia, é uma questão de soberania nacional, uma questão de democracia.